Nos dias 17 e 19/11, o CRPRS realizou o “Seminário Relações Raciais - referências técnicas para atuação de Psicólogas/os - Módulo I”. A atividade foi dividida em duas lives: a primeira sobre a dimensão histórica, conceitual, ideológico-política da temática racial e a segunda sobre os âmbitos do racismo institucional, interpessoal e pessoal.
O seminário, mediado pela presidenta da Comissão de Relações Étnico-Raciais do CRPRS, Roberta Gomes, foi organizado em parceria com o CREPOP, a Articulação Nacional de Psicólogas/os Negras/os (ANPSINEP) Núcleo RS, a Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) Núcleo Porto Alegre/Vale dos Sinos e com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pela sua Comissão Permanente do Combate ao Racismo Institucional do Instituto de Psicologia (CPCRI), seu Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI) e seu Departamento de Educação e Desenvolvimento (DEDS).
Já no início da live de 17/11, as/os representantes das entidades parceiras parabenizaram a iniciativa do Conselho por reunir vozes do campo de relações raciais e promover um debate sobre. “São seminários como esse que possibilitam que a gente possa ter ferramentas efetivas para a construção de uma política antirracista no campo da Psicologia, que carrega, ainda, consigo heranças e práticas que sustentam, muitas vezes, uma lógica colonial.”, salientou Luciana Rodrigues, da CPCRI-IP/UFRGS.
Para a Comissão de Relações Étnico-Raciais do CRPRS, o questionamento principal que seminário levanta é sobre por que o Brasil continua invisibilizando e segregando a população negra, mesmo ela sendo maioria no país (cerca de 56% dos brasileiros são pretos).
Segundo a conselheira Roberta, essa realidade deve ser discutida e reconhecida pela categoria. “Cabe a nós, trabalhadoras/es da Psicologia, estarmos atentas/os às questões raciais, combater o racismo estrutural e identificar o sofrimento psíquico das pessoas negras. Para isso, é fundamental que a gente considere a saúde mental como parte importante do processo de superação do racismo.”, salienta Roberta ao indagar que a Comissão luta por uma Psicologia antirracista, que vá para além do discurso e que incluía o recorte de raça em todas as suas ações, tendo como princípio uma atuação que seja plural, democrática e sem preconceito.
Na Mesa “Dimensão histórica, conceitual, ideológico-política da temática racial”, foram convidas para participar Veridiana Machado, psicóloga clínica e coordenadora nacional/NE (Núcleo Nordeste) da ANPSINEP, e Miriam Alves, psicóloga conselheira do CRPRS e docente na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e do PPGPSI/UFRGS.
Durante a live, Veridiana explicou que pensar nas relações raciais significa refletir de que modo o racismo atravessa as subjetividades da população negra e branca. Ela citou duas expressões de racismo: o “diferencialista”, aquele ligado ao Darwinismo Social, que vai dizer que não há como pensar em uma universalidade entre as raças e os povos (um mundo sem desigualdade racial), porque existem diferenças culturais, ideológicas e históricas; e o racismo “igualitário”, que traz a ideia de que “somos todos iguais”, negando as diferenças históricas e os privilégios dos brancos na sociedade. Veridiana acredita que, mais importante do que analisar as definições do racismo, é preciso pensar em como ele se expressa no Brasil e, para isso, o primeiro passo é compreender a história do colonialismo, junto ao capitalismo, no país.
O termo “alienação colonial” foi trazido para debate, quando a convidada mostrou que a exploração capitalista vai se configurar na sociedade moderna (séc. XV e XVIII) fazendo com que os brancos colonizadores e os negros colonizados negassem sua própria humanidade. “O negro escravizado foi objetificado, taxado como menos evoluído e sem alma, a ele foi tirada a possibilidade de ser visto e de se ver. Por isso, até hoje, podemos observar que o branco ou a cultura branca/ocidental fica com o status de universalidade e não precisa ser especificada, enquanto a população negra é generalizada e ganha só o estatuto de “negro”, aprisionada no estereótipo, criado pelos brancos, do que é ser uma pessoa preta.”, afirmou Veridiana.
Para Miriam Alves, essa distinção entre humanos e não humano foi o que subsidiou o processo de colonização do continente africano e das Américas. “O conceito de colonialidade vai além dos limites e particularidades do colonialismo histórico. Não desaparece com uma suposta independência, abolição da escravidão ou descolonização dos povos colonizados: segue tendo efeitos devastadores sobre os negros, ainda no contemporâneo”, comentou Miriam ao salientar a importância de prestar atenção nas características do período Brasil Colônia para entender o racismo estrutural que vem matando, marginalizando e prejudicando a população negra, durante todos esses anos. ”É fundamental que a gente possa pensar no que fizeram de nós, mas, sobretudo, no que ainda vem sendo feito.”
Miriam apontou que o racismo é, constantemente, atualizado pela colonialidade do poder, na lógica do capital; do saber, em sistemas de ensinos elitistas; do ser e da sexualidade. “Eu tenho dito que o racismo não pode ser visto apenas como uma temática, um fenômeno, ele precisa ser tratado como uma episteme, que faz parte do projeto colonial e eurocêntrico que produziu e continua reproduzindo genocídio da população negra e epistemicídio, negando as contribuições do continente africano para o patrimônio cultural da humanidade.”
O processo antirracista é lento, tanto na prática de políticas públicas como na de fazer Psicologia
Analisando a Constituição de 1988 e outros marcos importantes da história - como, por exemplo, a Marcha Zumbi, em 1995, onde o Estado brasileiro reconheceu oficialmente, pela primeira vez, a existência do racismo no país e comprometeu-se, em 2001, com a construção de políticas de ações afirmativas e de reparação para a população negra, a partir da Terceira Conferência Mundial das Nações Unidas contra o racismo, descriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, realizada na África do Sul – percebe-se que, comparado a um período histórico, a implementação de uma política antirracista e que discuta assuntos de relações raciais é recente, no Brasil, e, para as convidadas do seminário, ao olhar para a Psicologia, o atraso é o mesmo. “Temos apenas 19 anos de um Estado que se comprometeu em construir essas políticas e quando a gente olha para a Psicologia, ela, também, nos últimos anos, deu pouca ou nenhuma atenção para as pessoas que vivenciam a violência racista em seu cotidiano.”, afirmou Miriam.
“Acaba que mulheres, homens e crianças negras, ao narrarem suas experiências vividas com o racismo, foram e são, ainda, desacreditadas/os, invisibilizadas/os e silenciadas/os, tendo recusada a escuta de suas vivências pela nossa categoria”, destaca a convidada, concluindo que somente a partir do reconhecimento de que a sociedade é, realmente, racista, será possível enfrentar e corrigir as desigualdades raciais.
De acordo com a presidenta da Comissão de Relações Étnico-Raciais, Roberta Gomes, a atuação da/o profissional de Psicologia, portanto, deve estar embasada em uma descolonização do saber, através de uma aproximação de autores e autoras negras/os com o comprometimento de uma escuta que seja ativa e acolhedora a todas/os que vier a atender, não importa qual seja a área de atuação da/o psicóloga/o.
Âmbitos do racismo institucional interpessoal e pessoal
No segundo dia do Seminário, a mediação ficou por conta da psicóloga Gláucia Fontoura, integrante da Comissão de Relações Étnico-Raciais do CRPRS e coordenadora Nacional da ANPSINEP Região Sul.
Márcia Maria da Silva, da Diáspora Africana do Cerrado D'Afric, resgatou a trajetória histórica da constituição da população brasileira, destacando que essa construção foi, em diferentes momentos, sendo perpassada e moldada pela participação de diversos segmentos da sociedade, como academia, movimentos sociais e Estado, por meio das politicas públicas. “A construção da população negra sempre foi desvalorizada e marginalizada no Brasil. O país está estruturado no racismo e, consequentemente, o racismo estrutura o país”. Márcia destacou que o racismo é uma regra e não exceção e que o resultado disso no Brasil é um apartheid social, em que lugares de brancos e negros são demarcados.
Apresentando conceitos sobre os diferentes âmbitos do racismo, Márcia apresentou o conceito de racismo pessoal, que ocorre de forma automática, mediante sentimentos, convicções e hábitos no contexto de uma sociedade colonialista. “É algo que está posto e não depende de quem está praticando ou sofrendo. Há uma reprodução maquinal de costumes e lugares demarcados de superioridade e inferioridade”.
Já o racismo interpessoal ocorre em processos de desigualdade política, com base na raça/cor que ocorre entre os sujeitos em interação. “É uma relação que ocorre no interior das organizações, envolve gestores profissionais e usuários”.
Nas estruturas das organizações da sociedade e nas instituições, quando há uma falha coletiva em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica, há o racismo institucional. Dentro desse conceito, Marcia apresentou um panorama sobre a realidade brasileira nos lugares de poder. Entre os vereadores eleitos em 2020 nas capitais brasileiras, 44% são pessoas negras. Nas maiores empresas do Brasil, de acordo com levantamento do Instituo Ethos, a população negra representa apenas 4,7% no quadro executivo das empresas de maior destaque, sendo que as mulheres negras correspondem a somente 0,03%, duas diretoras em 548 diretorias mapeadas. “A consequência disso é a concretização do racismo na dimensão psicológica, na medida em que se consegue reduzir, inviabilizar, criminalizar e subalternizar e inferiorizar pessoas, reduzindo-as a uma condição sub-humana”, afirmou.
Para Márcia, a Psicologia tem potencial para desenvolver estudos que contribuam efetivamente para a compreensão da discriminação racial e o impacto disso nas subjetividades da população negra e articular intervenções clínicas e terapêuticas focadas na humanização.
A superação do racismo depende de decisão coletiva e implica corresponsabilidade. “Para isso, as instituições devem investir e promover a igualdade e diversidade; remover obstáculos para ascensão de minorias em posições de direção e prestígio; manter espaços permanentes para debates e revisão de práticas institucionais; e promover acolhimento dos conflitos raciais e outros”, concluiu.
Bento Saloio Daniel Mazuze, docente da Universidade Eduardo Mondlane/Moçambique, destacou aspectos do racismo interpessoal e o impacto na saúde mental da população negra. Para ele, é preciso refletir sobre a construção da identidade e como eventos traumáticos em torno disso levam a conflitos de existência e a uma consequente dor e raiva. Outro ponto destacado por Bento está relacionado à relação entre racismo pessoal e saúde mental que leva a coisificação do ser humano: “ao reduzir a consciência negra a objeto há um reducionismo que traz, como implicações, a depressão e a ansiedade”.
Para Bento, a população negra brasileira passa por muitos cenários de depressão e ansiedade e, diferentemente da população branca, não podem expressar esses sentimentos. “O negro é considerado fraco se expressa essa depressão ou ansiedade. É obrigado a esconder doenças psíquicas por conta da coisificação, como um mecanismo de defesa e não uma fraqueza”, explicou.
No encerramento da atividade, a psicóloga psicanalista Marina Pombo, integrante da Comissão de Relações Étnico-Raciais, fez um convite às/aos psicólogas/os brancas/os para se debruçarem sobre a pauta antirracista, assumindo o compromisso de escutar e transformar o mundo ao redor de cada um. “Nós precisamos falar sobre nossa subjetivação como raça branca e sobre nossa responsabilidade em relação ao racismo estrutural que nos atravessa diariamente e que reproduzimos no âmbito pessoal, profissional ou institucional. Precisamos desfazer a ideia de que são apenas as pessoas não brancas as responsáveis por lidar, discutir e combater uma estrutura de discriminação e opressão como o racismo”. Marina também ressaltou a necessidade das psicólogas/os brancas/os “assumirem uma postura ética e politica que desmantele na nossa práxis e na nossa vida uma não escuta do sofrimento causado pela nossa branquitude”.
O Seminário terá continuidade em 2021.
Assista às atividades na íntegra: