Um debate sobre Psicologia e Direitos Humanos na região Sul, realizado na Jornada do Núcleo de Estudos e Pesquisas É’LÉÉKO, da Ufpel, mobilizou estudantes e profissionais na tarde desta quarta-feira (18). O evento marcou na noite de terça-feira (17) o lançamento do Núcleo de Direitos Humanos da Subesede Sul do CRPRS, em Pelotas.
O debate reuniu a presidenta da Comissão de Direitos Humanos do CRPRS, Priscila Detoni, e da presidenta da Comissão de Políticas Públicas, Cristina Maranzana, além da colaboradora do Núcleo de Relações Sociais, Gláucia Fontoura. Também participou a professora Airi Macias Sacco, da Ufpel.
Priscila citou as vulnerabilidades produzidas pelo racismo, pelo sexismo e pela opressão econômica para justificar a atuação junto aos direitos humanos. E lembrou os cinco eixos que norteiam o trabalho do Núcleo: gênero e sexualidade, relações raciais, violência de Estado, direitos das crianças e adolescentes e acessibilidade e inclusão. “Não há uma psicologia neutra, que não passa pelos marcadores sociais da diferença. Essa é a matéria-prima do nosso trabalho, seja no espaço público ou no espaço privado”, disse.
Gláucia explicou a gênese da criação do Núcleo de Relações Raciais, desde os primeiros encontros em 2010 até a formalização do grupo, ocorrida em 2014. A psicóloga também convidou profissionais e estudantes para participar das reuniões do espaço.
A psicóloga Cristina levantou a necessidade de levar para o campo da Psicologia esse questionamento em relação às diferenças sociais, especialmente de quem atua nos Centros de Referência em Atenção Social (CRAS). ´”É um instrumento que articula territórios. Muito da Psicologia precisa ser reinventado para podermos atuar no CRAS,que é um lugar potente, um campo de disputa constante”, afirmou.
A professora Airi, da Psicologia da Ufpel, lembrou que o código de prevenção à crueldade contra crianças norte-americano, criado em Nova York em 1874, o Brasil ainda tinha escravos – a abolição só viria 14 anos depois. A declaração dos direitos humanos é de 1954. E a Convenção dos Direitos da Criança brasileira é de 1969, lembrou a psicóloga.
“A verdade é que a Psicologia servia pra solucionar problemas de ajustamento. Para ajustar negros, que eram e são tratados como inferiores, e para ajustar gays e lésbicas, que no senso-comum são pessoas doentes”, disse. “Todas essas ideia são muito recentes. São muito pequenas ainda. A Psicologia mudou porque precisava mudar”, completou.
Feminismo negro descolonial
O professor Alcione Correa Alves, da Universidade Federal do Piauí, alertou para o risco dos discursos científicos substituírem a fala dos objetos de pesquisa – pessoas negras, por exemplo – e, em médio prazo, até destruírem esses objetos. “Estamos diante de choque de teoria com sujeito, ou seja, quando o sujeito, no caso as mulheres, resiste. Nós estamos vendo essas mulheres porque isso está na moda ou porque a presença delas nos permite formular novos problemas de uma maneira diferente?”, questionou.
Da mesma forma, Alves citou o conceito de histeria elaborado por Freud para exemplificar o conflito entre teoria e sujeito de pesquisa no campo feminino – o fenômeno era atribuído a características femininas. “Como tratavam a histeria naquele momento? Com segregação. Porque a cidade, a razão, o pensamento, era e continua sendo coisa de homens”, disse.
Mulheres, e por extensão negros e homossexuais, têm como função, segundo o raciocínio de Alves, ser objeto de pesquisa para cientistas brancos, de acordo com o modelo pós-colonial. “Importante observar que não são as mulheres, ou os negros, que elaboram o conceito do que é ser mulher ou ser negro. E nem mulheres negras que elaboram as políticas públicas para as mulheres negras”, explicou. Segundo o pesquisador, há uma possibilidade “não desprezível” dessas políticas não serem eficientes.
Alves comparou o mecanismo de transferência intelectual a uma franquia: o modelo não pode ser modificado por quem o usa. “A crítica dos feminismos descoloniais é justamente essa: compramos pensamento estrangeiro e nos tornamos procuradores desse pensamento, e construímos políticas públicas, construímos orientações científicas com esse pensamento. No fundo, essas correntes de feminismo descolonial questionam a relação entre sujeito e objeto e avançam para uma relação, possível, entre sujeito e sujeito”, afirmou.
Racismo colonial
O teólogo e professor Jayro Pereira de Jesus, da Escola Livre Ubuntu, explicou o que entende por “incompletude civilizatória” causada pelo tráfico transnacional de escravos. E citou a jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques, autora do livro “Racismo em português – o lado esquecido de colonialismo”: o racismo colonial, segundo ela, foi um apagão, porque apagou a identidade dos povos escravizados, e um arrastão ideológico, porque contaminou mentalidades durante séculos, de tal modo que até hoje se verificamos seus efeitos.
Também se referiu ao capitão norte-americano William Lynch, que elaborou um método de controle de escravos no século 18 que incluía uma violência psicológica extrema contra suas vítimas. “Lynch usava o medo, a desconfiança e a inveja para controlá-los. E propunha que os senhores de escravos tivessem uma lista de diferenças, como idade, nuances de cor, inteligência, sexo, cabelo liso ou crespo, para gerar condições de dominação. Ele dizia que a desconfiança e a inveja são mais fortes que a confiança ou a admiração. E colocava velhos negros contra jovens negros. Jogava a pele mais escura contra a pele mais clara. O homem negro contra a mulher negra”, sintetizou.
“Então, não podemos tratar o tema do racismo como uma brincadeira inocente. A dominação intelectual foi fundamental para a nossa dominação. Aliás, não se dá de outra forma. Somos pretos, mas por dentro somos todos brancos mesmo”, lamentou Jesus.