Um grande evento, com a presença de mais de 100 psicólogas e psicólogas da região da Serra, além de educadores, comemorou na sexta-feira (26/10) os dez anos do Núcleo de Educação da Subsede Serra do CRPRS. O seminário “Psicologia e Educação: Desafios do Século XXI” foi realizado no auditório do Sindicato dos Servidores Municipais de Caxias do Sul (Sindserv).
Coordenado pela colaboradora Simone Courel, coordenadora do Núcleo de Educação da Subsede Serra, o evento debateu temas transversais para a Psicologia na educação, como a violência, a sexualidade, a inclusão e a diversidade, entre outros. Foram quatro mesas de discussão, reunindo especialistas de várias regiões do Rio Grande do Sul.
“Nosso objetivo era debater junto à categoria, à sociedade e aos demais profissionais do campo da Educação temas relevantes e atuais e contemplar alguns dos principais tópicos discutidos pelo Núcleo ao longo desses dez anos. Assim, pudemos apontar as contribuições da Psicologia para a Educação e elucidar sobre o fazer no campo da Psicologia Educacional e Escolar”, explicou Simone.
O evento teve a presença da Secretária de Educação de Caxias do Sul, Marina Matielo, e do presidente em exercício do Sindiserv, Rui Miguel, além de coordenadoras/es de cursos de Psicologia da região. A conselheira do CRPRS e integrante da comissão gestora da Subsede Serra, Fernanda Facchin Fioravanzo, destacou que o Núcleo é o mais antigo em funcionamento no interior do Estado e um dos mais atuantes.
Antes dos debates, o Núcleo homenageou os colaboradores que contribuíram para a consolidação do espaço de debate em Caxias do Sul.
A primeira mesa do evento debateu os cenários atuais da Psicologia Educacional. O filósofo e doutor em educação Vanderlei Carbonara, professor da UCS, explicou os conceitos de modernidade e contemporaneidade na educação. Citando Descartes e Lipovetski, Vanderlei criticou a opção da educação contemporânea pelo desenvolvimento de habilidades e competências, em detrimento do aprimoramento moral e cidadão dos indivíduos.
“A Educação, no seu sentido amplo, passou a ser um subproduto mercadológico da modernidade ao valorizar aspectos como empreendedorismo, inovação e desempenho por ranqueamento. A competitividade não passa de uma renúncia à ética, que é um efeito colateral dessa diretriz”, criticou.
A doutora em Educação e psicóloga social Jacqueline Enricone, professora da URI Erechim, seguiu na mesma direção: criticou a tendência de aluno-cliente, que caracteriza as escolas movidas pelo lucro e que entendem a educação como mercadoria. “Queremos estudantes satisfeitos ou, ao contrário, felizes? Não tem como ser feliz resistindo à reflexão e ao aprofundamento das questões e com a crescente medicalização”, disse.
A segunda mesa reuniu três especialistas em temas tão diversos quanto álcool e outras drogas, sexualidade e mídias virtuais. A conselheira do CRPRS e psicóloga Manuele Montanari Araldi, que falou sobre álcool e outras drogas, explicou que a dependência química é o grande sintoma social dos nossos dias. “Mais, muito mais do que a depressão”, comparou.
Para ela, a Psicologia deveria – como faz em relação a outros temas, menos polêmicos – apostar no diálogo e na subjetividade dos sujeitos. “O que a escola faz com o usuário adolescente de dentro da escola? Ou com aquele que trafica? Expulsa da escola? Isso é transferir o problema, já que muitos são ameaçados. Temos de parar para escutar o que esses estudantes têm a dizer”, afirmou.
A conselheira do CRPRS e especialista em Gestão de Políticas Sociais Fernanda Facchin Fioravanzo citou Foucalt para dizer que a sexualidade nos constitui desde que nascemos. “Os estudos mais contemporâneos já elucidaram que a sexualidade dos indivíduos é espectral, não simplesmente binária. A escola precisa abordar esses aspectos, bem como as transformações radicais porque têm passado as formas de constituição familiar”, recomendou.
Cíntia Inês Boll, doutora em Educação e professora da UFRGS, criticou o uso das tecnologias de comunicação e informação para “silenciar” as crianças. “Estamos perdendo uma grande oportunidade de considerar as possibilidades de interlocução comunicativa da tecnologia. Ou punimos impedindo o uso dos equipamentos ou negamos a relação com o outro na sua utilização. A cultura digital não cria bolhas, quem cria bolhas são as pessoas que frequentam a cultura digital”, opinou.
Depois do intervalo, a terceira mesa abordou laicidade, violência e medicalização na escola. A psicóloga Rosana Rossetti, do Núcleo de Educação do CRPRS, alertou para a crescente intolerância de culto no Brasil, que é o 23º país mais religioso do mundo. Segundo ela, os dados da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça apontam para um crescimento superior a 100% nas denúncias de intolerância religiosa entre 2016 e 2017. “Laicidade não se opõe à religiosidade, pelo contrário. Valoriza a pluralidade”, disse.
O advogado criminalista Jean Carbonera, integrante da coordenação do Programa de Justiça Restaurativa na Execução Penal em Caxias do Sul, mostrou dados que sustentam a tese de que a violência de Estado é diretamente proporcional à violência social. O estado norte-americano do Texas, de acordo com o pesquisador, concentra metade dos crimes violentos da região Sul dos Estados Unidos. Não por acaso, segundo ele, é o estado onde mais se condena à morte no país – foram quase 400 sentenças entre 1976 e 2006.
O criminalista também apresentou dados da situação penal do Brasil, que tem a terceira população carcerária do mundo sem que o índice reflita na redução da criminalidade e da violência. Onde há Justiça Restaurativa, argumentou ele, os índices de reincidência são inferiores a 10%.
“O senso comum é de que tem de prender. Mas precisamos ser mais criativos, já que mais penas levam a mais apenados, que levam a mais reincidência de crimes que, por último, levam a mais prisões. A atual guerra às drogas é absolutamente ignorante e ineficaz, mas o senso comum é de frases feitas e de indignação com situação caótica”, constatou.
O psiquiatra Jacson Peres, que atua com psicodrama e também no Ambulatório de Atendimento Integral a Crianças e Adolescentes Vítimas de Maus-Tratos (Apoiar), em Caxias do Sul, palestrou sobre medicalização. Segundo ele, a prática se acentuou ao longo do século XX a partir da pediatria norte-americana e o ideal da puericultura. “Esse conceito estabelece um parâmetro de normalidade e exclui o que não se enquadra nele. E o que é uma criança normal? A criança quieta, comportada e obediente”, criticou.
Para Jacson, os laudos escolares são cada vez mais violentos em relação ao enquadramento infantil – inclusive com linguagem médica e pedidos de prescrição medicamentosa. “O excesso de remédio na infância talvez seja o crime do século, que estamos ignorando. Há crianças que estão sendo sedadas dentro da escola, dentro de uma estratégia de governabilidade”, afirmou.
A última mesa, que iniciou já na noite de sexta-feira, reuniu especialistas em inclusão e diversidade. A doutora em Psicologia e professora da UCS Claudia Bisol também chamou atenção para os modelos patologizadores e medicalizantes que cresceram a partir da vigência da Lei da Inclusão, em 2008. “A mudança de modelo mostrou que a sociedade é deficiente em proporcionar oportunidades de autonomia a sujeitos diferentes. Ou seja, o problema é a sociedade”, constatou. E provocou: “nós, psicólogas, vamos contribuir para a patologização ou para a inclusão?”
A psicóloga Anelise Schaurich, especialista em Gestão de Organização Pública, abordou o tema da saúde mental do educador e citou seu estudo, que aponta um alto índice de distúrbios leves no magistério. Segundo a pesquisadora, quanto menor o grau de formação do docente, e consequentemente sua remuneração, maior é a incidência de problemas, seja por acúmulo de funções num mesmo cargo, seja por jornadas excessivas de trabalho.
“Na educação infantil, o índice de distúrbios mentais leves chega a 74%. O reflexo é um prejuízo crescente no planejamento das aulas, perda de entusiasmo e criatividade, frustração, hostilidade com pais e alunos e arrependimento profissional”, explicou.
A conselheira Elisângela Zanelatto, professora na Univates e presidente do Núcleo de Educação do CRPRS, encerrou o ciclo de debates com uma fala sobre os sentidos da aprendizagem. Para ela, a educação deveria adotar uma perspectiva ampla considerando os conceitos clássicos do termo – skole, de onde deriva a palavra escola, em grego quer dizer tempo livre, ociosidade.
“Nossas crianças estão brincando nas escolas? Têm tempo livre? Ou só estão autorizadas a brincar se cumprirem as tarefas e se comportarem? Educar é um ato de cuidado, de saúde, e um ato atravessado pelos afetos”, disse.