O auditório do CRPRS ficou lotado no sábado (24/03) para assistir à conferência sobre gênero e saúde mental da psicóloga e professora Valeska Zanello, doutora em Psicologia (UnB, 1997) e integrante do Laboratório de Psicopatologia, Psicanálise e Linguagem do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Contundente e objetiva, Zanello – que deu início ao Encontro “Mulheridades, Direitos Humanos e Psicologia” – comparou o preconceito de gênero aos crimes envolvendo racismo. “No Brasil, os maiores registros de violência estão sempre associados ao racismo e ao sexismo, nessa ordem”, afirmou.
Promovido pela Comissão de Direitos Humanos e pela Comissão de Políticas Públicas do CRPRS, o evento foi aberto pela presidente do Conselho, Silvana de Oliveira, e teve também a participação de integrantes de movimentos sociais para falar sobre saúde mental e relações de gênero. “Esse público aqui mostra que temos urgência de nos encontrar. Com alegria, mas também com espírito de luta, empenho e sororidade”, disse Oliveira.
Durante mais de duas horas, Zanello deu uma aula sobre os efeitos do machismo na saúde mental das mulheres – especialmente mulheres negras, que segundo dados do IBGE são as menos demandadas na “prateleira do amor” – e destacou a importância da linguagem no combate ao sexismo. A mediação foi da conselheira Priscila Detoni.
“As diferenças biológicas entre os sexos são construções sociais de gênero, a partir de uma interpretação histórica do corpo. Ou seja, o corpo é espaço de disputa do disciplinamento e do controle sociais. Mas essa disputa se consolida e aparece, sempre, interpretada por meio da palavra, da linguagem. Por isso a importância da expressão presidenta, que não é mera retórica, mas uma construção política”, afirmou.
Zanello usou casos clássicos, como o filme “A Pequena Sereia”, para ilustrar o que chama de “micro violências” cotidianas contra as mulheres: a personagem principal, a sereia Ariel, move seus desejos em função da conquista de um homem, sem o qual sua vida não estaria completa. É o que a especialista classifica como dispositivo amoroso. Nessa trajetória, Ariel aprende a se comportar como a mulher ideal em uma sociedade patriarcal: silenciosa, retraída e disposta a qualquer sacrifício para casar e manter o casamento.
“Muitas mulheres implodem em função disso, desenvolvem transtornos mentais importantes, como depressão e ansiedade, porque acabam sendo responsabilizadas pelo sucesso do empreendimento família. Não é exagero dizer que o casamento é um enorme fator de risco para a saúde mental das mulheres”, argumentou.
A especialista também explicou o dispositivo da maternidade, corresponsável pela opressão feminina ao promover um falso empoderamento, colonizado pelos interesses capitalistas. “Esse ideal de maternidade tem motivações econômicas e esconde um heterocentramento, uma impossibilidade de dizer não ao outro, que é prejudicial à saúde feminina. Uma maternidade assim é extremamente nociva”, disse.
Também não passou despercebido o papel do homem nessa engrenagem de poder – para eles, segundo Zanello, resta o papel sexual e laborativo, ou o que ela chama de dispositivo da eficácia. “Devido a essa pressão por resultados, seja no campo do trabalho, seja no campo sexual, assistimos a um embrutecimento geral do gênero masculino, seja consigo mesmo, com os outros homens ou com as mulheres. Os homens estão doentes no Brasil”, explica.
Roda de conversa
Na sessão da tarde, o seminário reuniu representantes de movimentos sociais para contarem suas experiências de militância no movimento feminista. A psicóloga Cecília Richter e a nutricionista Priscila Voigt, ambas do coletivo Mulheres Mirabal, explicaram a importância da ocupação para o acolhimento de mulheres em situação de risco. E também para a formação de redes de proteção e apoio mútuos entre as mulheres, vítimas de inúmeros níveis de violência. A mediação foi da conselheira Fernanda Fioravanzo.
“Os dados estatísticos são alarmantes e justificam a necessidade de espaços como a Mirabal. São cerca de 50 registros de agressão por dia na Delegacia da Mulher. O sofrimento mental em função disso é muito grande. Temos que cobrar do Estado o papel de acolhedor e de responsável, mas hoje somos nós que cumprimos esse papel”, disse Voigt.
Vitória Bernardes, do coletivo Feminino Plural e do grupo Desarma Brasil, falou sobre as dificuldades de ser mulher e ter deficiência, e ainda por cima ser mãe. “Quando soube que ia dar à luz uma menina, tive de ouvir: quem bom que é menina, alguém para te ajudar”, ironizou Bernardes.
Vítima de uma bala perdida que a deixou paraplégica, Bernardes criticou o preconceito multiplicado pela deficiência física. “Não temos política pública, não temos dados estatísticos, não tem informação nenhuma sobre nós. O Banco Mundial menciona vagamente um índice três vezes maior de violência contra mulheres com deficiência física. Não somos nem números ainda, como vamos construir políticas públicas?”, questionou.
Maria Luisa Pereira de Oliveira, do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres, lembrou do assassinato da socialite Angela Diniz, em 1976, como argumento de a violência gera comoção, mas não políticas públicas. “A mobilização naquela época criou o slogan ‘quem ama não mata’. Mas nunca foi garantia de formulação de políticas públicas com perspectiva de gênero”, avaliou.
Oliveira também destacou a questão racial como agravante de violência contra as mulheres e citou uma estatística do Mapa da Violência de 2015, que apontou um índice crescente de mulheres negras assassinadas (mais 54% de ocorrências entre 2003 e 2013) e uma redução nas mortes de mulheres brancas (menos 10%), apesar da Lei Maria da Penha. “Para nós, mulheres negras, a lei infelizmente não surtiu muito efeito”, criticou.