Cerca de 50 psicólogos e estudantes participaram do [b]Seminário de Psicologia e Políticas Públicas[/b] promovido pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS) nos dias 26 e 27 de novembro em Porto Alegre (RS).
O seminário foi composto por seis mesas: “Psicologia, Compromisso Social e Políticas Públicas”, com a Conselheira Presidente do CRPRS Vera Lúcia Pasini; “Políticas Públicas na Perspectiva da Garantia de Direitos”, com a psicóloga Ana Luíza Castro; “Clínica e política”, com a psicóloga Analice Palombini; “O Controle Social como Estratégia de Interlocução dos Psicólogos com a Sociedade”, com a Conselheira Vice-Presidente Vania Roseli Correa de Mello; “A Formação em Políticas Públicas: Reflexões Críticas Sobre o Processo”, com a psicóloga Neuza Guareschi; e “Implicações do CRP com as Políticas Públicas: A experiência do CREPOP/RS”, com a Assessora Técnica do Centro de Referência em Psicologia e Políticas Públicas, Silvia Giugliani.
Confira abaixo a íntegra da apresentação da palestrante Analice Palombini.
[b]CLÍNICA E POLÍTICA[/b]
[i]Analice de Lima Palombini[/i]
Não é a primeira vez que eu venho ao Conselho para falar deste tema. E provavelmente não tenha nada a dizer que não seja reafirmar o que já venho dizendo há algum tempo. Então, aos que já me escutaram, minha fala talvez possa soar repetitiva. Mas tenho a expectativa que, da insistência dessa repetição, possamos extrair algo de fato novo. Ou quem sabe vocês possam escutar algo novo ali onde eu penso me repetir Foucault nos ensina a compreender a política como relação de forças, relações de poder que não têm um centro, mas são múltiplas e capilares, expressas naquilo que se diz e que se vê. São micropolíticas. Nessa perspectiva, o saber se constitui também como jogo de forças, relações de poder. É como me interessa pensar, junto com vocês, a relação entre clínica e política.
Tomo como mote uma notícia publicada esta semana, não sei se em jornal de alguma circulação. Está disponível na página da Associação Brasileira de Psiquiatria. A ABP esteve recentemente em processo eleitoral, para escolha de sua nova diretoria. A esse respeito, a notícia diz o seguinte (grifos meus): [i]Novo presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) é eleito afirmando que vai defender os psiquiatras e, por consequência, os pacientes da atual política de saúde mental do Ministério da Saúde[/i].
Quero me deter nesses dois pontos, para se pensar a articulação entre clínica e política: primeiro, que os psiquiatras precisem defender-se de uma política de saúde mental; segundo, que a defesa dos psiquiatras implique a defesa dos pacientes.
Vou tomar os psiquiatras aqui, como caso. Ou melhor, vou considerar a Associação Brasileira de Psiquiatria como caso, mas aplicável, por extensão, a associações e agrupamentos de outras categorias profissionais como a dos psicólogos, p.ex. − ao que se diz e ao que se vê também entre os psicólogos.
Começo pelo segundo ponto: para o novo presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, defender os psiquiatras da atual política de saúde mental do Ministério da Saúde tem como consequência defender os pacientes. É um argumento irrecusável, se entendermos que o psiquiatra precisa do paciente para justificar-se psiquiatra. Portanto, defender o status quo do psiquiatra é defender o status quo do paciente. Não é outra coisa o que nos diz Foucault, ao nos apresentar as técnicas psiquiátricas, utilizadas no interior do asilo desde o século XIX, que fazem existir como saber médico o poder de intervenção e o poder disciplinar do psiquiatra. Assim, através do interrogatório médico, um sujeito é levado a confessar perante esse médico (eu cito Foucault aqui): “sim, ouço vozes! Sim, tenho alucinações!”. Ou seja, é obrigado a dizer: “efetivamente, sou aquele para quem foi constituído o hospital psiquiátrico, sou aquele para quem é necessário haver um médico; sou doente e, já que sou doente, você, que tem por função me internar, é médico.” (FOUCAULT, 2006, P.356)
É no mesmo sentido, aliás, que pudemos ouvir recentemente um diretor de hospital psiquiátrico lamentar que o movimento da reforma psiquiátrica tenha deixado de nomear de “doentes” aqueles que deveriam ser alvo de cuidados médicos. Chamá-los “usuários”, “moradores”, “cidadãos”, seria privá-los desses cuidados, seria prescindir da figura do médico.
Então, que os psiquiatras precisem defender-se da atual política de saúde mental talvez signifique que essa política é eficaz o bastante para desconstruir a figura do paciente, substituindo-a pela de usuário dos serviços de saúde mental, participante, protagonista do Sistema Único de Saúde e suas redes. Diante desse usuário, então, o psiquiatra, tanto quanto o psicólogo, o terapeuta ocupacional, o assistente social, os profissionais do campo da saúde mental, precisam se reinventar. Tornarem-se outros, diferente daquilo que foram, daquilo que tendem a ser, conforme o mandato social que lhes foi imputado e que lhes exige disciplinar os corpos protegendo a sociedade daquilo que foge às suas normas. “Eu não sou mais paciente” ou “não sou só paciente”, “e tu terás que ser outro junto de mim...”
Nesse sentido, um legado precioso que Freud nos transmitiu é o que reconhece a dimensão de resistência que é própria à subjetividade, que entende que as singularidades se forjam aí, nesse ponto de resistência que, constituindo-se na relação ao outro, escapa às capturas pelos saberes/poderes vigentes. Na contramão do que defende o novo presidente da ABP, esse legado é cada vez mais crucial para orientar a nossa clínica na contemporaneidade. É o que nos permite entender que, se a histeria era o signo da resistência à injunção disciplinar, pela recusa da sua apropriação pelo saber médico, a compulsividade é hoje um dos traços que leva ao seu limite paradoxal o imperativo do consumo presente na atualidade. (GONDAR, 2003).
Mas eu sigo, ainda, com o que nos diz o presidente eleito da ABP, de nome Antonio Geraldo da Silva. Segundo ele: com a justificativa de “humanizar o tratamento”, grupos militantes na saúde mental com forte influência no Governo pretendem reclassificar a doença mental como um problema social. Assim, a condução das políticas de saúde deixa de ser atribuição dos médicos e passa ao controle dos ‘movimentos sociais’. Este é o verdadeiro objetivo. E arremata: O melhor tratamento apenas o médico é capaz de indicar
Nem sob controle dos movimentos sociais, nem prerrogativa médica, a clínica requerida pela “atual política de saúde mental do Ministério da Saúde” é uma clínica imersa nos territórios de vida e, por isso mesmo, é uma clínica da complexidade, inter ou transdisciplinar. O saber que ela exige não é mais o saber de um especialista, o saber dos doutos, quer seja o médico, o psicólogo ou outro. Não que os conhecimentos construídos pela psicologia, psiquiatria, psicanálise, ou pela ciência política, sociologia, antropologia, enfim, não sejam pertinentes a esse campo. Mas os seus saberes deixam de estar solidamente assentados no exercício de uma relação de poder com respeito ao objeto do seu conhecimento A relação saber-poder é substituída pela relação saber-fazer: o conhecimento se constrói na experiência, que não é previsível nem controlada, mas um campo aberto de incertezas. Isso nos remete a um contexto mais amplo, de crise paradigmática em torno ao impasse da divisão eu/outro, sujeito/objeto, afetando o próprio ideário do sujeito da modernidade.
É preciso entender que essa incerteza não é um mal a ser sanado. A incerteza faz função de conhecimento, na medida em que, justamente, ela é signo de uma certa disjunção entre saber e poder que obriga a um rearranjo dos saberes, que se vêem confrontados aos seus pontos de ignorância (nenhum saber é total) e necessitam interagir com o conjunto de saberes envolvidos num campo para poder atuar nele, para saber-fazer – interagir atuando juntos, trocando idéias, explicitando conceitos, debatendo e negociando posições... afetando e sendo afetados um pelo outro. Nada mais avesso a isso que dizer que “o melhor tratamento apenas o médico é capaz de indicar”.
Faz parte desse conjunto de saberes todo saber-fazer que compõe esse campo e que não se reduz aos saberes de especialista citados acima. O saber-fazer necessário ao campo da clínica, necessário à “atual política de saúde mental do Ministério da Saúde”, o saber-fazer que importa aí inclui ainda as técnicas de gestão, de administração, o agir comunitário. Mais ainda, inclui também o saber-fazer do cozinheiro, do auxiliar de limpeza, do porteiro... Quanto mais o cuidado em saúde mental consegue penetrar na cidade, mais são os saberes-fazeres com que se vai interagindo: o saber-fazer da escola, o do dono da pensão, o do vizinho da rua...
Evidentemente, esse rearranjo todo, que é conseqüência do rompimento do tipo de relação instituída entre saber e poder, faz-se acompanhar também de uma perturbação no alinhamento vertical das profissões. A aceitação dos limites do nosso saber e o reconhecimento do saber do outro, a afetação recíproca entre os saberes em jogo (todos os saberes) requer que os trabalhadores possam, eles também, livrar-se das correntes, libertar-se do seu aprisionamento histórico a um ordenamento rigidamente hierarquizado, a um modelo de obediência que desautoriza a invenção e prescreve comportamentos. É preciso ousar construir um outro modelo que aponte para a horizontalização nas relações de trabalho. Um modelo que opere na base do estabelecimento de uma relação de confiança entre seus atores, onde as responsabilidades sejam compartilhadas e onde a palavra possa circular. Onde haja, não submetimento, mas negociação.
Um ponto crucial nesse rearranjo dos saberes e no seu deslocamento com respeito às relações de poder é que aquele que era antes objeto do conhecimento – o usuário, o louco, a loucura, a doença mental, como queiram chamar – passa a se incluir nesse rearranjo como sujeito de saber também, em interação e afetação recíproca com os demais. Não é um saber de livro, um saber intelectual, racionalizado, mas um saber absolutamente singular, que se constitui na experiência de viver – nas suas descobertas e paixões, dores e alegrias – e que pode ser inconsciente sem por isso deixar de ser saber.
Então, no ponto de inflexão entre a clínica e a política, se quisermos levar à sua máxima radicalidade essa articulação, coloca-se em questão o quanto a nossa clínica cotidiana de fato incorpora a voz dos usuários na definição de suas ações, na formulação do projeto terapêutico singular, na gestão do serviço, nos modos de itinerância no território.
No que me diz respeito, como docente num curso de graduação em psicologia, coloca-se igualmente em questão o quanto a voz do usuário está presente na produção de conhecimento, nas políticas da pesquisa, no ensino e na extensão que se oferece. Não a voz presumida do paciente (aquele que o novo presidente da ABP julga defender), que responde ao que lhe é solicitado; mas uma voz imprevista, dissonante, carregada de uma realidade própria que faz deslocar a Universidade de lugar. Faço menção aqui a três experiências distintas, no âmbito do ensino, da extensão e da pesquisa, que, ao integrar a voz do usuário nos seus processos de produção, colhem os efeitos que disso decorre na formação de seus estudantes e que vão na direção de uma abertura às possibilidades de invenção.
1. No ensino:
O convite à participação de usuários da saúde mental em sala de aula, na condição de ensinantes a respeito de temas que a sua experiência encarna: equipamento e dispositivos de saúde mental, rede de cuidados, história da reforma psiquiátrica. Como docente, tenho feito valer esse convite em momentos pontuais de meu ensino. Porém, sabe-se de experiências sistemáticas, como a conduzida pelos professores Erotildes Maria Leal e Octavio Domont Serpa Jr, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na disciplina de psicopatologia, onde quem ensina é o usuário, aquele que passou pela experiência do adoecimento psíquico, pela experiência de ouvir vozes, ter alucinações. (SERPA JR., LEAL, LOUZADA, SILVA FILHO, 2007; LEAL, SERPA JR., 2009). Não se trata de uma apresentação de pacientes, mas, sim, do esforço de compartilhamento de uma experiência.
2. Na extensão:
Mediante projeto de extensão que coordeno junto ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, têm-se propiciado a participação de estudantes de graduação no Coletivo de Rádio Potência Mental, para a realização de programas radiofônicos junto com usuários oriundos de diferentes serviços de saúde mental de Porto Alegre e dos seus arredores. Nesse caso, fazer “junto com” é fazer junto mesmo; não “fazer pelo outro” ou “para o outro”, nem “deixar que o outro faça”. Fazer junto com é juntar-se ao outro, o que requer a aprendizagem de um outro ritmo, a experiência de um tempo lento, aberta aos imprevistos e ao improviso, disponível aos seus acontecimentos. (STREPPEL, GORCZVESKI, PALOMBINI, 2010).
3. Na pesquisa:
Sob a coordenação da professora Rosana Onocko Campos, da Universidade de Campinas, e de Nilson Sousa, da Associação de Familiares e Amigos da Saúde Mental de Campinas (Aflore), o Projeto ARUC-I (Associação Internacional de Pesquisa Universidade-Comunidade em parceria Brasil-Canadá), reúne quatro universidades brasileiras (Unicamp, UFF, UFRGS, UFRJ) em parceria com a Universidade de Montreal, para a condução de pesquisa em torno ao tema Saúde Mental e Cidadania. Dando conseqüência a esse tema, usuários dos serviços de saúde mental das cidades envolvidas no projeto integram o comitê gestor da pesquisa e mantêm também um comitê de usuários cidadãos, responsável pela avaliação e formulação de projetos a serem financiados, além de participarem das reuniões de trabalho de pesquisa em cada centro universitário e nas reuniões multicêntricas. Não por acaso, o carro-chefe desse projeto é uma pesquisa-intervenção sobre a experiência da medicação e a possibilidade de alcançar uma gestão compartilhada da medicação, com participação ativa do usuário.
Para concluir, retomo algo que já pude dizer aqui (PALOMBINI, 2009): Se a prática em que nos engajamos busca a instauração de formas singulares de existência, se o que buscamos é inventar, multiplicar, modular novas formas de relação, buscando constituir laço sem que isso implique o apagamento de uma singularidade, ou seja, mantendo viva a chama de uma resistência, trata-se de uma escolha clínica e uma escolha política. Uma escolha que só pode operar na contramão de uma sociedade disciplinar, psiquiatrizada, uma sociedade que, contemporaneamente, no limite da sua capilarização, vale-se do controle que cada um exerce sobre si mesmo, por exemplo, através da auto-medicação, para atingir seu ideal de regulação. Uma escolha que se afirma no contrafluxo de um mundo em que cada vez mais se usam as tecnologias de saúde para determinar performances e prescrever comportamentos, abandonando as práticas linguageiras e intensivas do campo psi, na ambição de controlar os corpos pelo apagamento do menor traço de resistência, por meio de soluções neuroquímicas.
A clínica é sempre política. Evidentemente, nem toda clínica se exerce da maneira que professamos aqui. Mas toda clínica é comprometida, implicada politicamente. Em cada clínica é possível reconhecer, ao mesmo tempo, o pólo disruptor que emerge de suas práticas, através do qual se faz possível uma reinvenção da existência, um alargamento dos modos de habitar a cidade; e o seu pólo normalizador, ligado ao contexto disciplinar de onde tais práticas provêm, em que se impõe uniformidade e controle à vida na cidade. (ibidem). Sermos capazes de reconhecer a presença desses dois pólos em cada ato clínico que produzimos já nos situaria num patamar muito promissor de exercício de nossa profissão, abrindo espaço para que o usuário tome a palavra, tendo cada vez mais voz entre nós.
[b]REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS[/b]
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. Políticas públicas de saúde mental são contrárias aos médicos. Publicado em 17/11/2010. Disponível em: http://www.abpbrasil.org.br/medicos/clipping/exibClipping/?clipping=12757. Acesso em 08/12/2010.
FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
GONDAR, Jô. A clínica como prática política. In: Lugar Comum, n.19, 2003, p. 125-134.
LEAL, Erotildes Maria; SERPA JUNIOR, Octavio Domont de. Psicopatologia e reforma psiquiátrica: uma experiência de ensino protagonizada por quem vivencia o sofrimento psíquico. In: Caderno Saúde Mental 2. Universidade e Reforma Psiquiátrica: interrogando a distância. Belo Horizonte: Escola de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais, 2009, p.57-66.
PALOMBINI, Analice de Lima. A ética da clínica é também sua política. Entrelinhas. Publicação trimestral do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul. 1º. de março de 2009, p.12-14.
SERPA JUNIOR, Octavio Domont de; LEAL, Erotildes Maria; LOUZADA, Rita de Cássia Ramos and SILVA FILHO, João Ferreira da. A inclusão da subjetividade no ensino da Psicopatologia. Interface (Botucatu) [online]. 2007, vol.11, n.22 [cited 2010-12-08], pp. 207-222 . Available from:
. ISSN 1414-3283. doi: 10.1590/S1414-32832007000200003.
STREPPEL, Fernanda Fontana., GORCZVESKI, Deisimer, PALOMBINI, Analice de Lima. Rádio-acontecimento: modos de comunicar potência mental. Periferia. , v.II, p.4 - , 2010.