Os desafios da saúde no que diz respeito aos direitos e às necessidades da população trans e travesti foram debatidas na última semana, durante um evento realizado nas tardes dos dias 27, 28 e 29/07. O curso População Trans e Saúde foi promovido pelo Centro de Referência em Direitos Humanos, Relações de Gênero, Diversidade e Raça – Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (CRDH – NUPSEX), da UFRGS, em parceria com o CRPRS.
O evento aconteceu no Auditório Hermillo Galant da Justiça Federal de Porto Alegre e contou com a participação de cerca de 250 pessoas - no geral, profissionais da Psicologia e de outras áreas da saúde. Ao longo dos três dias, diversos estudantes, profissionais, pesquisadores e militantes dos direitos da população trans e travesti passaram pelo evento, trazendo suas experiências e reiterando a necessidade da despatologização dessas identidades.
A atuação dos/as profissionais de Psicologia por meio de um viés despatologizante também foi reafirmada ao longo do curso. Para a conselheira do CRPRS Ana Paula Denis Ferraz, presidente da Comissão de Direitos Humanos, o Conselho tem a responsabilidade de lançar um olhar ético e político sobre o tema da despatolização, destacando o trabalho multidisciplinar do/a psicólogo/a nesse processo. “Não podemos fazer isso sem o olhar técnico dos/as profissionais que estão na prática e que buscam isso”, afirmou na mesa de abertura.
Histórico das Transexualidades e Travestilidades
No primeiro dia do evento, os participantes debateram o “Histórico das categorias diagnósticas relacionadas às Transexualidades e Travestilidades no campo da saúde e suas implicações epistemológicas”.
A primeira mesa contou com a presença do professor e pesquisador da UFMG Marco Aurélio Máximo Prado, membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, abordou como a Psicologia vem compreendo as experiências trans, defendendo sua despatologização. Criticou os procedimentos necessários para a alteração dos registros civis das pessoas trans e para a realização das cirurgias de redesignação sexual. Atualmente, no Brasil, para conseguir alterar seus documentos, as pessoas trans ainda precisam de um laudo psicológico com um diagnóstico e, para ter direito à cirurgia de redesignação através do SUS, têm de passar por acompanhamento psicoterápico durante dois anos. “Por que, para algumas experiências, a ideia do arrependimento é sempre algo preocupante?” questionou Prado, defendendo que o Sistema Conselhos deve se posicionar contra a obrigatoriedade da emissão de laudos e contra a compulsoriedade do acompanhamento psicoterápico. Ele afirmou, ainda, que a Psicologia deve repensar a ideia dos laudos e se constituir a partir de um conhecimento que vem das pessoas e do respeito às experiências trans: “Só vamos produzir um lugar para a Psicologia no que diz respeito à transexualidade se reconhecermos que o saber pode vir de um lugar que não o científico”, apontou.
Na segunda mesa da tarde, Eric Seger de Camargo (NUPSEX/CRDH/IBRAT/Gemis) e Sophia Starosta Bueno de Camargo (NUPSEX/CRDH/REDETRANS) apresentaram o histórico do diagnóstico da transexualidade e também abordaram as principais técnicas de acesso a recursos da saúde para além do sistema de diagnósticos.
Eric resgatou como a área da Saúde vêm compreendendo a transexualidade ao longo da história e como essa questão aparece no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e no Código Internacional de Doenças, problematizando as definições que a medicina traz e reiterando a necessidade da despatologização. Além disso, apresentou as principais reivindicações e atuações dos movimentos sociais ao longo dos anos, desde a aparição da definição “transexualismo” no DSM de 1980, e reforçou a importância de se reformular critérios com o objetivo de tornar inteligível vivências diversas, dando voz às pessoas trans e dos movimentos sociais.
Já Sophia apresentou quais são as redes alternativas de saúde de mulheres transexuais e travestis, contextualizando a hormonoterapia na América Latina e afirmando que muitas mulheres acabam se hormonizando de forma independente durante toda a vida, sem o apoio dos sistemas de saúde. Em sua fala, também resgatou como se deu a busca por recursos estéticos, principalmente a partir da década de 1970, com a consolidação das identidades hoje conhecidas como travestis.
Despatologização
No segundo dia do curso, Eric Seger de Camargo, como representante gaúcho do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), pautou a relação dos movimentos sociais e da despatologização. Falou sobre as principais demandas dos homens trans nos sistemas de saúde, destacando que muitos homens optam pela auto-hormonização em função da dificuldade de encontrar profissionais da saúde aptos a prestar esse tipo de atendimento ou por conta do preconceito também presente nos sistemas de saúde.
Viviane Vergueiro, pesquisadora da UFBA, discutiu a despatologização das identidades trans a partir de uma perspectiva descolonizadora, contextualizando como a patologização impacta na forma com que as populações trans têm acesso à saúde. Ela criticou a generalização dessas populações, afirmando que as especificidades têm de ser analisadas de forma interseccional. "O paradigma patologizante olha pra essas complexidades de formas limitadas, priorizando um modelo de atenção de saúde que é centralizado em hormônio e cirurgia. Se a gente não olharmos para saúde da população trans de uma maneira integral, podemos deixar muitas pessoas nas margens desse acesso", criticou.
Luisa Stern, advogada a integrante da ONG Igualdade, debateu questões políticas relacionadas aos direitos da população trans, trazendo a perspectiva do Direito no que diz respeito à garantia de direitos. Ela explicou, ainda, como funcionam os processos de alterações dos registros civis no Brasil e destacou o trabalho realizado pelo grupo G8 - Generalizando do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS, na realização de mutirões para a alteração de registros civis, em parceria com a ONG Igualdade. Até o momento, os mutirões, que costumam ser realizados no Dia da Visibilidade Trans (29 de janeiro) já auxiliaram na retificação de cerca de 130 registros de pessoas trans que conseguiram a alteração de seus documentos.
Na segunda parte da tarde, a conselheira e presidente da Comissão de Direitos Humanos do CRPRS, Ana Paula Denis Ferraz, participou de discussão para a elaboração de Nota Técnica que problematize a produção de laudos por parte de psicólogos/as e respalde a prática pautada na produção de pareceres que destaquem a trajetória de vida das pessoas trans numa perspectiva despatologizante. Durante o curso foi constituído um Grupo de Trabalho para elaborar essa Nota Técnica. Participaram também do debate Marco Aurélio Máximo Prado (CFP), Flávia Luciana Magalhães Novais (NUPSEX/CRDH) e Marina Reidel (Secretária Estadual da Justiça e dos Direitos Humanos).
Elaboração de laudos e desafios para profissionais de saúde
O último dia do curso deu sequência ao debate sobre a elaboração de laudos e sobre os processos judiciais. Eduardo Lomando, integrante do Napse (Núcleo de Atendimento e Promoção de Saúde em Sexualidade e Gênero) relatou sua experiência enquanto psicólogo na elaboração de pareceres e defendeu o fim da exigência dos laudos. Ele destacou a importância de que os/as profissionais de Psicologia discutam a elaboração dos documentos e mostrem os pareceres às pessoas que necessitam desse tipo de serviço.
Os desafios para a atuação dos profissionais da saúde também foram debatidos na última mesa do evento, que contou com a participação da presidente da ONG Igualdade, Marcelly Malta; do pesquisador e professor da PUCRS Angelo Brandeli Costa; e do coordenador da política estadual de saúde LGBT, Iuday Motta. Angelo apresentou dados coletados durante sua pesquisa de doutorado, que expõe a discriminação e o preconceito a que a população trans está sujeita no Brasil. Ele resgatou que algumas políticas públicas já são realizadas pelo Estado, mas avaliou que "A política pública sobre o contexto da saúde trans ainda é muito tímida no Brasil". Iuday trouxe exemplos de ações realizadas pelo estado, destacando os desafios para a implementação de uma política de saúde voltada à população LGBT, promovendo a equidade em saúde de forma transversal. Para finalizar o evento, Marcelly relembrou as mudanças no acesso à saúde durante sua trajetória enquanto militante pelos direitos da população trans e travesti.
Em breve, o CRPRS irá publicar em seu canal no Youtube trechos do curso População Trans e Saúde.