Reportagem de Luís Eduardo Gomes publicada no site Sul 21 em 05/08/2020. Confira aqui.
Entre o final de junho e o início de julho, o Sindicato dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul (Sindsepe), que representa servidores da Secretaria Estadual de Saúde (SES), começou a receber denúncias sobre um surto de covid-19 no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP) e no Hospital Colônia Itapuã (HCI). As denúncias foram temas de matérias em diversos veículos da imprensa gaúcha há cerca de duas semanas. Contudo, entidades apontam que o governo ainda não tomou medidas para conter o surto e, pior, sequer tem sido transparente sobre a extensão do número de casos e óbitos registrados nestas instituições.
A conta que está sendo usada pelo Sindsepe a partir de relatos de servidores, mas que não é oficial, é de que já foram registrados ao menos oito óbitos entre os pacientes das duas instituições, sendo cinco deles em Itapuã e três no São Pedro. “A última informação é de que já ultrapassou 80% dos moradores do São Pedro que estavam positivados. No Hospital Colônia Itapuã, as servidoras conseguiram que não se alastrasse tanto os casos e estava em 22, porque fizeram uma espécie de isolamento”, diz Diva da Costa, presidente do sindicato.
Entre os servidores do São Pedro, ao menos 20 já teriam testado positivo. No caso do HCI, seriam 22 pacientes positivados e 13 servidores que foram afastados por covid-19, dos quais oito tiveram a confirmação por exame. “As informações são muito imprecisas, não tem uma informação sobre quantos colegas (se contaminaram). O hospital não disponibiliza essa informação. Mas o servidor viu o paciente morrer e viu o paciente ser positivado”, complementa Diva.
Em resposta a questionamentos encaminhados pela reportagem, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) confirmou na tarde desta quarta-feira, 05/08, que quatro internos do São Pedro já faleceram devido à covid-19 e que, ao todo, 13 moradores da instituição foram encaminhados para hospitais de referência e 12 servidores foram afastados após testarem positivo para a doença. Neste momento, dois pacientes estão internados na instituição, segundo a pasta.
Em relação ao Itapuã, a SES confirma cinco óbitos e 15 pacientes contaminados no total, com quatro deles já considerados recuperados. Também confirma que oito servidores testaram positivo, dos quais quatro estão recuperados e quatro estão em isolamento domiciliar.
A psicóloga e professora Maria de Fátima Bueno Fischer, integrante do Fórum Gaúcho de Saúde Mental (FGSM) — entidade que reúne trabalhadores, usuários e familiares envolvidos com o assunto no Rio Grande do Sul — aponta a falta de transparência como um dos principais problemas na atuação do governo estadual diante dos surtos. Ela afirma também haver um problema de omissão do governo, pois seria previsível que instituições que registram aglomerações de funcionários e pacientes estariam mais vulneráveis a surtos de covid-19.
“O nosso desespero, a nossa indignação, é saber que nada foi feito. Nós, como já fomos gestores e como somos sabedores da situação colocada por essas instituições, (defendíamos) que em março deveria ter um protocolo, uma organização dos serviços, que imediatamente desse contingência a essa situação. Como não foi feito e eles não responderam, não tem transparência alguma, não houve nenhuma mudança e nenhum dado apresentado, a gente começou a ficar muito preocupada”, diz Maria de Fátima, que já atuou na coordenação do São Pedro.
Ana Luiza Castro, presidenta do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP-RS), avalia as denúncias como algo “muito grave”. “Primeiro, porque muitos não deviam estar lá. A gente tem a lei da reforma psiquiátrica de 2001. Nós estamos em 2020, então o Estado do Rio Grande do Sul não tratou de construir a rede que pudesse dar conta dos serviços substitutivos para essas pessoas. Agora, tu imagina, num grande hospital, com portadores de sofrimento mental, durante um surto de covid. É muito grave”, diz.
Também conselheira do CRP-RS, Luciana Fossi afirma que o CRP tem obtido informações a partir de denúncias anônimas e que tem buscado dar visibilidade para elas, o que tem ocorrido por meio de lives que abordam o assunto. “Uma coisa que a gente está indo atrás são os nomes. A gente quer os nomes das pessoas que morreram, porque a gente tendo nome a gente consegue individualizar um processo judicial, por exemplo”, diz.
De acordo com as entidades, os servidores das instituições estão receosos de formalizar denúncias, por medo de represálias, por isso os relatos sobre a dimensão dos surtos são bastante imprecisos. Neste sentido, Ana Castro avalia que o surto está recebendo pouca atenção porque atinge pessoas que são historicamente ignoradas, “sem vez e sem voz” na sociedade. “Essas pessoas, como todos nós, têm o direito de serem assistidas e, inclusive, têm o direito de ter uma morte digna”.
Diva diz que o sindicato pediu uma audiência com a secretária de Saúde, Arita Bergmann, mas ainda não teve retorno, o que motivou ir atrás dos meios de comunicação para divulgar as denúncias. “A única coisa que a gente sabe é que os e-mails foram abertos com a solicitação de audiência”. O sindicato também procurou o Conselho Estadual de Saúde e fez uma denúncia junto ao Ministério Público do Trabalho. “Até agora, não recebemos nenhum retorno dos servidores de que alguma coisa tenha realmente mudado. O que aconteceu ali no São Pedro, por exemplo, eles encaminharam um documento com desenhos de como eles iam separar os leitos, mas, efetivamente, a distribuição de EPI adequado, em quantidade suficiente, isso ainda está longe de acontecer”, diz.
Tratamento em condições inadequadas
Segundo Luciana, a informação que chegou ao CRP é de que moradores do São Pedro, muitos deles internados há décadas, começaram a manifestar sintomas e foram isolados dentro da própria instituição, o que critica de forma veemente, pois diz que, em anos anteriores, já havia o relato de internos que contraíram pneumonia e outras doenças respiratórias devido à falta de condições adequadas para a acomodação e tratamento dos internos nas instituições.
“O hospital psiquiátrico não tem complexidade tecnológica de dar conta de síndromes respiratórias, não tem oxigênio, não tem os recursos que a gente sabe que são necessários para o tratamento na situação do agravo dos sintomas da covid-19. Então, a denúncia que está chegando é de que estariam os internos sendo isolados dentro do próprio São Pedro e não estariam sendo encaminhados para ter os devidos cuidados de saúde. Ou seja, estariam sendo deixados à própria sorte, entregues para a morte. São pessoas que têm muitas comorbidades, já têm um histórico clínico de muita degradação pela própria situação que o manicômio produz de descuidado”, afirma.
Maria de Fátima diz que, no início da semana, o Fórum Gaúcho foi informado de que havia uma unidade do São Pedro em que todos os moradores testaram positivo. “É uma unidade onde estão moradores com deficiência física, portanto é um quadro mais grave ainda, é uma população de maior exposição a risco, que estão todos contaminados. Quando recebemos essa informação, sabe a sensação de morte?”.
Ela avalia que, no São Pedro, há duas unidades que foram reformadas recentemente e que possuem ao menos ar-condicionado e condições de ventilação em que os moradores contaminados e em estado não grave poderiam ser isolados, enquanto os pacientes em estado grave e que precisam de atendimento de UTI deveriam ser encaminhados para os hospitais de referência. Além disso, destaca que, como não há funcionários suficientes, deveria ocorrer contratação emergencial, o que não está havendo.
Falta de testagem
Um problema recorrente no enfrentamento ao covid-19 pelo governo do Rio Grande do Sul, já denunciado por diversas entidades representativas de profissionais da saúde, que pode estar na origem dos surtos é falta de testagem dos profissionais de saúde.
Diva explica que, como a maioria dos pacientes do São Pedro e Itapuã são, de fato, moradores das instituições, e não estão tendo contato com familiares, a grande probabilidade é de que os surtos têm como origem profissionais que cumpriram jornadas contaminados. Ela destaca que a maioria dos servidores dos hospitais não têm dedicação exclusiva e, por isso, além da carga de seis horárias diárias trabalhada para a SES, também atuam em outros locais, o que exigiria a implementação de protocolos de testagem e o fornecimento de equipamentos de proteção para evitar que levassem o vírus para dentro dos hospitais.
“Os pacientes não saíram do hospital, nem receberam visitas para poderem ser contaminados. Mas tu não tem nem equipamento de proteção individual para os servidores e nem um protocolo para testar essas pessoas que vêm e voltam todos os dias do trabalho, sendo que muitos trabalham em hospitais referência para o covid-19 aqui em Porto Alegre”, diz a presidente do Sindsepe. “Quem tá na ponta, quem sai todo dia para trabalhar, e os profissionais da saúde principalmente, o risco é muito maior de se contaminar. E, como a gente sabe que muitos são assintomáticos, a contaminação se dá de forma silenciosa. A nossa maior briga, e isso se amplia para outros departamentos da SES e para o interior, é que se tenha, primeiramente, a testagem regular dos servidores, com PCR”, complementa. O RT-PCR é o teste que detecta o vírus na fase ativa.
Diva afirma que os relatos dos servidores que atuam no São Pedro é de que os critérios para testagem dos funcionários são bastante confusos e casos semelhantes não estão sendo tratados da mesma forma pela direção da instituição. “Eu recebi relatos de servidores que foram até a direção do hospital e foram testados com o PCR. E eu recebi relatos de servidores que estavam sintomáticos e tinham acabado de receber a notícia de que, no dia anterior, atenderam pacientes que tinham testado positivo, que já estavam inclusive no isolamento, e a direção do hospital não possibilitou que esse servidor fizesse a testagem, inclusive orientou que eles buscassem a rede municipal ou realizassem o teste pelo IPE, que também a gente não tem conseguido fazer”, diz.
Segundo ela, os profissionais da área de Enfermagem estão trabalhando “como se não houvesse pandemia” e as equipes multiprofissionais e da área administrativa operaram, por um período, em regime de revezamento e teletrabalho, bem como os trabalhadores dos chamados grupos de risco. “Mas a enfermagem não tem como fazer isso. Não teve equipamento, nem reposição de pessoal. E os servidores que foram contaminados, que acabaram indo para a quarentena, o colega que ficou teve que trabalhar por dois”, afirma.
Luciana Fossi diz que o CRP-RS entrou em contato com o Conselho Estadual de Saúde buscando informações sobre a questão da testagem e que foi informado que, em reuniões com a secretaria, o tema foi cobrado do governo. Contudo, diz que, até o momento, nenhum documento com plano de ação ou protocolo de testagem para conter o surto foi apresentado oficialmente.
A SES diz que não houve falta de equipamentos de proteção em nenhum hospital e que há testes rápidos e RT-PCR sendo realizados a partir dos protocolos das instituições. “Todos protocolos foram adotados para prevenção e tratamento e constam no Plano de Contingenciamento de cada hospital. No HPSP, pacientes com covid-19 ficam isolados. Todos os pacientes que chegam para internação são testados e permanecem 72 horas na triagem para serem avaliados clinicamente. Eles são acompanhados até o encaminhamento às respectivas unidades. O hospital dispõe de termômetro infravermelho e todos os funcionários assinaram termo de recebimento dos EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), que são distribuídos conforme as necessidades de cada setor. Não há falta de equipamentos. Há testes rápidos de anticorpo e RT-PCR disponíveis no hospital, realizados seguindo protocolos da instituição. A área de internação hospitalar se mantém sem casos de covid-19. Por precaução, as visitas estão suspensas desde 31/03”, diz a resposta da SES encaminhada à reportagem.
Em relação ao Itapuã, a pasta diz que foram tomadas medidas de prevenção conforme o Plano de Contingenciamento do Hospital. “A instituição dispõe de EPIs para todos os funcionários e pacientes, bem como disponibiliza testes rápidos de anticorpo e RT-PCR, seguindo os protocolos”, diz a nota.
A Assembleia Legislativa aprovou, em reunião nesta quarta-feira, 05/08, a realização de de uma audiência pública para debater a situação dos moradores e servidores do Hospital Psiquiátrico São Pedro e do Hospital Colônia Itapuã. A proposta foi encaminhada pelo deputado Valdeci Oliveira (PT) e por seus colegas de bancada Edegar Pretto, Pepe Vargas e Zé Nunes e o encontro virtual deverá ser realizado no próximo dia 26 de agosto, a partir das 9h.
Fonte: Reportagem de Luís Eduardo Gomes publicada no site Sul 21 em 05/08/2020. Confira aqui.