“Infelizmente, não nos causa surpresa tal escolha”. A constatação integra posicionamento do Conselho Federal de Psicologia (CFP), dos Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) e de entidades que integram o Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira (FENPB), quanto à nomeação do psiquiatra Rafael Bernardon Ribeiro, nomeado em 18/02 como o novo coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, do Ministério da Saúde.
Em nota, as entidades ressaltam que tal nomeação segue na esteira “de todo um movimento orquestrado com o propósito de, paulatinamente, desmantelar a Política de Saúde Mental progressista e humanitária construída há anos por trabalhadores/as, usuários/as e familiares, principalmente da luta antimanicomial”. O novo coordenador-geral da área, é importante ressaltar, defende publicamente o uso da eletroconvulsoterapia, terapêutica que consiste no uso de correntes elétricas por meio de uma convulsão induzida com o intuito de reverter quadros clínicos mais graves.
“Assim, entendemos que esta defesa da implementação da eletroconvulsoterapia não encontra justificativa razoável do ponto de vista do que mais interessa, que é a saúde da população, favorecendo financeiramente uma terapêutica controversa, em conjunto com outros dispositivos de cunho mercantilista e de viés científico retrógrado, em detrimento de uma política de saúde mental construída de forma democrática e que prioriza a garantia dos direitos humanos, e um cuidado de forma integral e intersetorial”, pondera a nota.
Confira, abaixo, a íntegra do posicionamento do Sistema Conselhos de Psicologia.
Nota sobre as mudanças na Coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, do Ministério da Saúde
Em publicação no Diário Oficial da União de 18/02, o psiquiatra Rafael Bernardon Ribeiro foi nomeado como o novo coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, da Secretaria de Atenção Primária à Saúde.
Infelizmente, não nos causa surpresa tal escolha. Rafael Bernardon Ribeiro, que, já no governo Temer, foi coordenador adjunto na Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, e posteriormente consultor do Ministério da Saúde, cuja trajetória profissional é circunscrita à realidade do hospital psiquiátrico, sem experiências em serviços comunitários, é um ferrenho defensor da eletroconvulsoterapia, e pode ser considerado como um dos responsáveis pela assim chamada Nova Política Nacional de Saúde Mental, junto a Quirino Cordeiro Júnior.
Percebemos, portanto, que a nomeação vem na esteira de todo um movimento orquestrado com o propósito de, paulatinamente, desmantelar a Política de Saúde Mental progressista e humanitária construída há anos por trabalhadores/as, usuários/as e familiares, principalmente da luta antimanicomial, em um esforço para efetivar a assistência integral e digna, conforme prevê a atual Constituição, que culminou na publicação da Lei 10.216, de 2001. Esta trouxe um novo paradigma para os cuidados em saúde mental a partir de princípios relacionados à garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais de serem tratadas em serviços comunitários, tendo como finalidade a reinserção social.
Vale lembrar, nesse sentido, que já em 2019 foi publicada a Nota técnica 11/2019 CGMAD/DAPES/SAS/Ministério da Saúde, que entre outros retrocessos trouxe a previsão de eletroconvulsoterapia (ECT) e financiamento da aquisição do equipamento, concomitante à ratificação da política de hospitais psiquiátricos, inclusive pela atualização dos valores pagos por internação.
A bem da verdade, este movimento anti-Reforma Psiquiátrica nunca deixou de existir, sendo um projeto que perdura no tempo e, se não expressamente, sem dúvidas traduz-se no momento atual em ações de desmonte da política de saúde mental calcada na atenção psicossocial . O recente credenciamento de 492 novas comunidades terapêuticas pela SENAPRED (Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas) é só um dos exemplos da tendência à remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil.
Quanto à prática em si da eletroconvulsoterapia – ECT, embora regulamentada profissionalmente no Brasil, como ato médico, pela Resolução CFM nº 2.057, de 12/11/2013, está longe de ter unanimidade entre a comunidade científica. Esta terapêutica, que consiste no uso de correntes elétricas com o intuito de reverter quadros clínicos mais graves, como depressões severas e psicoses agudas, por meio de uma convulsão induzida, tem sido objeto de pesquisas cujos achados demonstram, em suma, que não há como inferir com precisão pela maior efetividade desta terapêutica em relação ao placebo, ou que não haja danos cognitivos a longo prazo.
Até mesmo a alegação da existência de evidências científicas a seu favor não leva em consideração que o discurso científico é historicamente produzido por disputas de saber-poder, envolvendo diferentes concepções e atendendo a diferentes interesses. Nesse sentido, a defesa da eletroconvulsoterapia baseada explicitamente nas evidências científicas do discurso biomédico busca anular a vasta produção científica associada às Políticas e Práticas de Atenção Psicossocial que foram produzidos por diversos domínios da produção do conhecimento, tais como a psicologia, a saúde coletiva e a psiquiatria democrática. Estas ressaltam o caráter iatrogênico dos tratamentos segregacionistas e destacam a eficácia clínica dos tratamentos comunitários e multiprofissionais, efetivados nos territórios e que integram a Rede de Saúde Mental Substitutiva.
Cabe ressaltar ainda que, em se tratando da realidade brasileira, entendemos que não há como se garantir a atenção devida quanto aos protocolos, já que não se dispõe de fiscalização apropriada. Ao contrário, é causa de preocupação a possibilidade de que haja um incremento no uso indevido da ECT, que historicamente esteve presente como instrumento punitivo dentro de hospitais psiquiátricos.
Relembramos que a IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial, espaço de expressão maior de participação popular para as políticas públicas de saúde mental realizada em 2010, explicita que ECT, psicocirurgias e demais intervenções invasivas não devem ser remuneradas pelo SUS.
Assim, entendemos que esta defesa da implementação da eletroconvulsoterapia não encontra justificativa razoável do ponto de vista do que mais interessa, que é a saúde da população, favorecendo financeiramente uma terapêutica controversa, em conjunto com outros dispositivos de cunho mercantilista e de viés científico retrógrado, em detrimento de uma política de saúde mental construída de forma democrática e que prioriza a garantia dos direitos humanos, e um cuidado de forma integral e intersetorial.
Por fim, o Sistema Conselhos de Psicologia, pelo seu Conselho Federal e seus Conselhos Regionais, reafirma seu compromisso com a Reforma Psiquiátrica e com a defesa intransigente da ciência, do SUS, da atenção psicossocial e da Luta Antimanicomial.
Fonte: Conselho Federal de Psicologia