A criação de uma política sobre drogas inclusiva e integral, orientada pelos princípios da luta antimanicomial, na perspectiva da redução de danos e pela garantia dos direitos humanos é defendida pelo Sistema Conselhos. Confira a entrevista sobre o tema com o psicólogo, especialista em Saúde Mental Publica e em Gestão de Serviços de Saúde, assessor técnico da divisão de Saúde Mental da Secretaria da Saúde de São Bernardo do Campo, Décio de Castro Alves.
- O senhor acredita que as comunidades terapêuticas são os novos manicômios?
Não, mas acho que podem ser piores que o hospício. Estão espalhadas por todo território nacional, capilarizadas e alimentadas, boa parte delas, por "princípios religiosos", o que as tornam dispositivos de fé e evangelização, apoiadas pelas comunidades que professam da mesma fé e embasadas na ideia de que o Estado não faz/fez nada para enfrentar a "epidemia do crack", o que, absolutamente, não é verdade. Praticam uma política segregacionista, de afastamento dos sujeitos às suas realidades, em ambientes fechados, condição básica – segundo a ONU – para a violação de Direitos Humanos dos cidadãos submetidos a sua ordem. Além disso, a "Epidemia da mídia sobre o crack" torna a opinião pública tendenciosa, ansiosa por uma solução rápida, mágica, para todos estes problemas seculares de desigualdade social que, aliás, sempre estiveram presentes em todas as cidades brasileiras. Clamam por uma solução "urgente" e esquecem de ouvir, perguntar aos maiores interessados, os usuários de crack, qual é a política pública que eles querem. E, quando querem tratamento, não me parece lógico que sejam encaminhados, muitas vezes à revelia, para lugares que não dispõem de Equipes Interdisciplinares em Saúde. Agora, a imprensa precisa avisar aos prefeitos municipais que, é deles a responsabilidade de implantar Centros de Atenção Psicossociais III em Álcool e outras Drogas (CAPS AD III), com boa parte do financiamento aportado pelo Ministério da Saúde, devidamente equipados para o atendimento destes grupos vulneráveis. Vejam vocês... desde 2001!
- As internações compulsórias ainda são defendidas por parte da sociedade. Quais suas principais críticas a essa prática?
A internação compulsória é um dispositivo jurídico/institucional previsto em lei e que, como qualquer dispositivo, deve ser utilizada pelo Estado em condições bem específicas, quando todos os dispositivos de cuidado em saúde mental já foram utilizados e não produziram o resultado esperado, que é reduzir o risco iminente de morte que os sujeitos possam produzir a si próprio ou a terceiros. Ora, se a grande maioria dos municípios brasileiros ofertam pouco ou nenhum cuidado em saúde mental para os severos abusadores de drogas, não organizaram suas redes de atenção em saúde mental, não implantaram CAPS AD III, Consultórios de Rua, Equipe de Redutores de Danos, Unidades de Acolhimento (Repúblicas Terapêuticas), Unidades de Desintoxicação em Hospitais Gerais e Pronto Atendimentos, podemos afirmar que o Estado Brasileiro desrespeita suas próprias leis punindo aqueles cidadãos que são sujeitos de direito e que deveriam ser cuidados, preferencialmente, em meio aberto. Para mim, a internação compulsória é como a bala dentro da arma do policial. Só deveria ser utilizada quando a sociedade civil ou seus cidadãos, o que inclui o policial, corre risco iminente de morte, tendo sua vida ameaçada. Sua utilização em qualquer outra situação demonstra a falência do Estado. Transformar a internação compulsória em dispositivo geral da política pública tem um nome: chama-se higienização. Há pelo menos 400 anos sabemos que esta prática política é ineficaz e produtora de mais sofrimento humano e violações de toda a ordem contra os sujeitos a quem o estado tem o dever de ofertar tratamento em saúde. Está na Constituição Federal.
- Na sua opinião, quais são as atividades ou práticas mais eficientes no tratamento de pessoas com transtornos mentais e dependentes de álcool e outras drogas?
Todos aquelas previstas, discutidas e aprovadas pela IV Conferência Nacional De Saúde Mental - intersetorial de 2010, pelo conjunto de cidadãos e cidadãs que realmente se importam com estas questões e se mobilizaram nacionalmente para construir este valiosíssimo instrumento de construção de políticas públicas que é seu relatório final. Todas as práticas que respeitam o cidadão como sujeitos plenos de direito, ofertando conjuntos de cuidados que vão para além da Atenção Integral em Saúde Mental, previstas pelo Sistema Único de Saúde. Devemos ofertar o mais variado arsenal terapêutico, o que inclui Psicoterapias de diversas linhas, Terapias Ocupacionais, Cuidados em Enfermagem, Cuidados Médicos em suas diversas especialidades, Acompanhamento Terapêutico, atividades de geração de trabalho e renda, oficinas de arte e expressão, atividades esportivas e de cuidado pessoal, etc. Com apoio fundamental dos CRAS e CREAS do Ministério do Desenvolvimento Social e também das áreas de Habitação, Educação, Cultura, Esportes, Trabalho e Economia Solidária, Justiça, Segurança Pública, etc.
- O que o senhor acredita que é necessário para que a rede pública de atenção psicossocial funcione melhor? Em que áreas o Governo deveria focar seus investimentos?
No caso da Saúde Mental, não tenho dúvida que o investimento prioritário devem ser nos dispositivos de atenção integral de base comunitária, os chamados CAPS III, com funcionamento 24 horas e com oito leitos para hospitalidade diurna/noturna. Ainda são poucos no país e deveriam ser implantados nacionalmente. A grande maioria dos municípios que o implantaram e mantiveram seu financiamento não só pararam de internar em Hospitais Psiquiátricos, como atendem a um número muito maior de sua população nestes locais porque os CAPS III (Transtornos Adultos e Infantil, AD adulto e Infanto-Juvenil) previnem crises psiquiátricas, tratando os sujeitos contínuamente em seu território de origem. São largamente aceitos pela população que faz tratamento neles bem como seus familiares e pela população em geral. No caso de Álcool e Drogas as equipes de redutores de danos e os consultórios de rua, assim como as repúblicas terapêuticas devem ser capilarizadas pelo território nacional para que o Estado Brasileiro possa ampliar o enfrentamento do abuso de consumo de SPAs, com dignidade e respeito aos direitos destes cidadãos. Quanto à gestão da Rede de Cuidados é necessário que a Federação, os Estados e os municípios trabalhem em conjunto, principalmente no financiamento, implantação e avaliação de seus investimentos. Os municípios arcam, muitas vezes, com a maior parte dos gastos em saúde mental. O Governo Federal precisa injetar mais recursos e cobrar de seus parceiros o investimento negociado, fiscalizando mais intensamente sua aplicação. E, os Estados, em sua grande maioria investem muito pouco seus recursos em saúde ou quando investem, como é o caso do meu Estado de origem, São Paulo, o fazem mal. E na contra-mão do que é proposto nacionalmente, como recentemente pude constatar no município onde trabalho, São Bernardo do Campo. Estamos nos último três anos,na Gestão Luiz Marinho, fechando leitos no único Hospital Psiquiátrico de nossa região, substituindo-os por leitos de atenção na comunidade (CAPS III, CAPS AD III, CAPS ADi III, 4 Residências Terapêuticas, 4 Repúblicas Terapêuticas, Leitos em Hospital Geral, UPAs e PSs, etc) e, vem o Governo do Estado e compra estes leitos desativados, reforma-os e vai utilizar para cumprir medidas de Internação Compulsória de gestantes usuárias de crack . O Sistema Único de Saúde veta a gestão de Hospitais, particulares ou Públicos, por mais de um ente federativo. O Estado de São Paulo não negociou nem com o município gestor e nem com a região, não acata o preconizado pelo SUS e, portanto, não cumpre a lei.