A Comissão de Processos Clínicos e Psicossociais do CRPRS promoveu na sexta-feira, 06/12, o evento “Escuta e Clínica no Contemporâneo” com o objetivo de orientar a categoria sobre a amplitude desses conceitos. A mediação do debate foi feita pela psicóloga Maria Luísa Pereira de Oliveira, integrante das Comissões de Processos Clínicos e Psicossociais e de Relações Étnico-Raciais.
A conselheira Alice Ubatuba de Faria, integrante da Comissão de Processos Clínicos e Psicossociais, fez a abertura do evento destacando a mudança de nome da Comissão. “Considerando que 60% das/os psicólogas/os no Brasil atuam na ou para as políticas públicas no Brasil, a atual Gestão do CRP percebeu que a Comissão de Psicoterapia estava muito associada à Clínica tradicional e precisávamos mudar isso. Nosso objetivo não é excluir a psicoterapia, mas incluir todas as outras formas de fazer da Psicologia”. A mudança inclui discutir sobre clínica e escuta considerando a perspectiva dos direitos humanos e das relações étnico-raciais, o que teve início com este evento.
Carmem de Oliveira, esquizoanalista, sócia-diretora da Intercessão Consultoria, Instituições e Clínica, falou sobre o que esperar da Psicologia em tempos de crise. Destacou a necessidade de introduzir no campo clínico um trabalho coletivo de descolonização e de produção do comum. “É preciso um trabalho coletivo de descolonização do inconsciente, ir além da indignação, que expressa o sofrimento individual. A partir da convivência na diversidade e de um comprometimento propositivo, precisamos construir um novo movimento ‘vira-voto’, com uma conversa aberta para além das bolhas de convertidos.”
Para Carmen, boa parte do adoecimento psíquico hoje está vinculada às condições de hipercompetição, subsalário e exclusão promovidos pelo neoliberalismo. “É nesse contexto de desresponsabilização do Estado e do mercado que se constrói uma subjetividade do ‘empresário de si’, que fez da pessoa o centro e a fonte da ação, pois cabe a cada sujeito agir, tomar a iniciativa e assumir riscos. Os sujeitos se sentem frustrados em suas expectativas e decepcionados com as promessas de êxito através do trabalho duro. A depressão resultante provoca uma ferida do narcisismo, que reduz a energia libidinal investida na ação e, consequentemente, aumenta a depressão pelo fato de que ela provoca nos sujeitos uma queda do ativismo e da capacidade competitiva”. Carmem observa que a atual ascensão ao poder de forças conservadoras parece ter características aparentemente distantes desse novo capitalismo, como no caso da defesa do nacionalismo, da rigidez e do arcaísmo, que contrastam com as estratégias expansionistas e flexíveis do mercado neoliberal. “Não estamos vivendo uma crise do capitalismo, mas antes pelo contrário o triunfo do capitalismo de crise”, analisa. A crise de subjetividade decorrente dessa insegurança existencial – desencadeada para introduzir o remédio, ‘desestabilizar para estabilizar’ – é, para Carmem, um jogo de culpabilização. “A culpa é voltada contra o próprio sujeito e contra um outro qualquer que seja escolhido como vilão”.
Maíra Brum Rieck, integrante da ONG ALICE (Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação) e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) falou sobre a idealização do Museu das Memórias (In)Possíveis, iniciativa do Instituto APPOA. O Museu das Memórias (In)Possíveis do Instituto APPOA é busca inscrever histórias e narrativas, acolhendo as produções de sujeitos cujos lugares discursivos estão fragilizados nos laços sociais. Sustentando-se na teoria e na ética da psicanálise, a missão do Museu é de questionar as relações entre sujeito e cultura, “apresentando-se como um lugar no qual aqueles que são sacrificados pela cultura possam ser reintegrados eticamente”. Por meio de seus objetos, o Museu se propõe a fazer intervenções nos laços sociais, produzindo mudanças no modo como determinados sujeitos são inscritos nos espaços públicos e na memória coletiva. “São histórias e pessoas tratadas como ‘inferiores’, relegadas à condição de resto, correndo o risco de terem sua existência apagada e de serem apagadas da existência, em nome de um suposto bem maior. Por isso, os objetos do Museu são produzidos a partir de transferências que, ao nomearem os traços dos objetos, inscrevem um lugar para os sujeitos. O Museu dá lugar aos testemunhos de vozes que não foram ouvidas e busca criar tempos e espaços para que o sujeito possa ali surgir a partir do registro de seus traços”, revela Maíra.
A conselheira Miriam Cristiane Alves, presidente da Comissão de Processos Clínicos e Psicossociais do CRPRS, professora da UFPel e Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS, destacou em sua fala como a Psicologia, em sua história, sempre deu pouca ou nenhuma atenção para pessoas que vivenciam violências racistas em seu cotidiano. “Há uma recusa da escuta dessas vivências pela categoria. Falas são desacreditadas e invisibilizadas. E não falar de racismo pode aumentar a sensação de que isso não é um problema. Temos uma reprodução da violência racista em diferentes espaços quando a profissão silencia e não reconhece o racismo”, avalia Miriam que destaca a importância de a/o psicóloga/o branca/o olhar para sua branquitude enquanto lugar de privilégio racial na escuta de negros.
Com o objetivo de sensibilizar e qualificar essa escuta, o Conselho Federal de Psicologia publicou a Resolução nº 18/2002, que estabelece normas de atuação para as/os psicólogas/os em relação ao preconceito e à discriminação racial, e mais recentemente lançou a publicação “Relações Raciais: referências técnicas para atuação de psicólogas/os”. Além disso, no último ano o CRPRS lançou a publicação “Núcleo de Relações Raciais: Percursos, Histórias e Movimentos”. Como exemplo dessa reflexão necessária para a Psicologia, Miriam citou o grupo terapêutico "Diz Aí! Conversando sobre Raça, Gênero, Sexualidade e Raça" da Universidade Federal de Pelotas, um espaço de escuta terapêutica, diálogo e empoderamento para pessoas cujo sofrimento psíquico está transversalizado por violências racial, de gênero e sexualidade. “No exercício de nossa profissão, é importante a/o psicóloga/o branca/o implicar-se com o racismo no cotidiano e construir uma clínica política antirracista”.
Miriam também citou o livro “Memórias da Plantação - Episódios De Racismo Cotidiano” de Grida Kilomba como um importante referencial para o enfrentamento do racismo, processo que deve passar pelas etapas de negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação.