Às vésperas de completar 30 anos no cotidiano das políticas públicas do país, em 2019, a redução de danos em álcool e outras drogas foi tema de um seminário que reuniu mais de uma centena de participantes na sexta-feira (28/09) no auditório central da Unisinos. O evento foi definido como uma “trincheira” contra a supressão de políticas públicas em saúde e assistência social.
Os participantes – psicólogas/os, estudantes, professores, redutores de danos, agentes públicos – foram unânimes em afirmar que o risco de retrocesso é real. Organizado pelo CRPRS, Fórum Estadual de Redução de Danos (FERDRS), Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd-Sul), Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), Rede Multicêntrica (UFRGS), o evento teve apoio do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisinos.
O secretário de Saúde de São Leopoldo, Ricardo Charão, procurou pontuar a estratégia das/os especialistas que trabalham com redução de danos. “Não existem políticas públicas sem democracia, não existe SUS sem democracia e não existe redução de danos sem SUS. É preciso retomar nossa prática política para impedir retrocessos”, disse.
A presidente da Abramd, Luciane Raupp, foi mais longe. Denunciou os pesados interesses econômicos e ideológicos que existem por trás da política de drogas e identificou as iniciativas que ameaçam a manutenção de programas de garantia aos direitos individuais, como a Resolução 32 (2017) do Ministério da Saúde e a Resolução 1 (2018) do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).
“Foram medidas tomadas às pressas, sem controle social e votadas às escondidas. As duas resoluções ampliam a visão proibicionista, promovem a abstinência, fortalecem os laços com as comunidades terapêuticas e estão na contramão da estratégia mundial, na medida em que valorizam mais a internação do que os serviços extra-hospitalares”, afirmou.
Conselheira do CRPRS e coordenadora da mesa de abertura do seminário, a psicóloga Manuele Montanari Araldi definiu o encontro como um ato de articulação – mais do que de debate. “Vivemos um momento de grandes ataques à nossas pequenas conquistas históricas. A redução de danos sempre precisou ser trincheira, por isso a necessidade de trabalharmos juntos nos nossos diversos espaços de atuação”, explicou.
O depoimento mais contundente veio do professor Tadeu de Paula, da UFRGS. Formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), do Rio de Janeiro, ele narrou que aderiu à estratégia da redução de danos depois de constatar que a maioria dos adolescentes que tratou durante seu estágio acadêmico morreu antes de chegar à idade adulta. “Mas não morreu pelo efeito do consumo de drogas e sim pela insana guerra ao tráfico”, lamentou.
Segundo Tadeu, a atual política de combate às drogas é “racista e genocida” e tem como alvo a pobreza dos grandes centros urbanos. Apesar de violenta, completou, tem um alcance bem limitado. “O objetivo é impedir essa camada social de se tornar agente político no país, como prova o assassinato da vereadora Marielle Franco no Rio em março deste ano”, argumentou.
O professor também criticou o binarismo da atual política de drogas, que divide os usuários entre curados ou doentes. É uma falsa polarização, segundo ele, 0pois muitos usuários aceitam se tratar mesmo que continuem usando álcool ou outras drogas. “Profissionais de saúde têm que acolher esses indivíduos, na medida em que o SUS é universal. É uma demanda absolutamente legítima. E a redução de danos já mostrou que é, também, viável”, defendeu.
Outro depoimento marcante foi das usuárias Alessandra Alves da Silva e Deise Mendes Ribeiro, do Movimento da População de Rua e integrantes da ocupação Zumbi dos Palmares, em Porto Alegre. As duas descreveram a difícil situação de viver na rua e as regras restritivas dos abrigos públicos, que discriminam casais e mulheres com filhos, além de criticarem a medicalização abusiva dos tratamentos.
“Fugi três vezes do Conselho Tutelar com minha filha menor e cada vez que saída das internações tinha ainda mais vontade de usar devido à abstinência. E, além do mais, era um vício ou outro: a droga ou o remédio”, disse Deise, que hoje mora numa comunidade.
Muitas outras vozes se levantaram durante o evento em defesa da redução de danos, como da professora Rose Mayer, da Escola de Saúde Pública do Estado, de Adroaldo Lopes, redutor de danos em Santa Cruz do Sul, da pesquisadora Marta Conte, de Maria Angélica de Castro, da ONG paulista É de lei, e do juiz Luciano Losekann, da Vara de Execução de Penas Alternativas do RS.
O evento atendeu às diretrizes 2.11 e 2.15 do Eixo I das deliberações do IX Congresso Nacional de Psicologia, realizado em 2016, que preconiza a promoção de ações que visem à superação da legislação antidrogas vigente no Brasil, focada na repressão, e a criação de espaços de discussão, debates e combates às políticas proibicionistas, tendo como foco a descriminalização e a garantia do direito das/os usuárias/s ao acesso às políticas públicas.