Direitos Humanos
Os direitos humanos são normas que reconhecem e protegem a dignidade de todas as pessoas. São os direitos humanos que regem o modo como as pessoas vivem em sociedade e entre si, bem como sua relação com o Estado e as obrigações que o mesmo tem em relação a todas as pessoas. Os direitos humanos, em teoria, estão destinados a serem aplicados de maneira igualitária a todas as pessoas, independentemente de sua origem, raça, religião, gênero ou qualquer outra característica. Eles são fundamentais para garantir a dignidade e o respeito de todos os seres humanos. Ocorre que, na vivência de tais direitos, há marcadores sociais que evidenciam a desigualdade da realidade brasileira. Nesse sentido, faz-se necessário uma postura crítica para o exercício profissional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos começou a ser elaborada em 1946 pela Organização das Nações Unidas (ONU), sendo promulgada dois anos depois, em 1948, durante a Assembleia Geral da ONU. Trata-se de um documento composto por 30 artigos que determinam direitos básicos a que todo ser humano deve ter acesso, independentemente de sua raça, religião, gênero e posição social.
A Psicologia como ciência e profissão deve compreender e respeitar as subjetividades e os diversos modos de ser e existir, levando em conta diferenças e diversidades que constituem todos os sujeitos: a raça, a classe social, a etnia, as expressões de gênero e de sexualidade, as religiosidades, as culturas, os territórios. Isso não é uma posição político-partidária, é uma posição ético-política. Por vezes, numa tentativa de despolitizar a realidade coletiva, deixando de fora do debate as estruturas que organizam e mantêm as desigualdades sociais, como a cisnormatividade, heteronormatividade, o capacitismo e a branquitude - acabamos por nos debruçar apenas naquilo que é da ordem do essencialismo ou do individual.
Neste sentido, a Psicologia tem o compromisso ético-político com a dignidade de todas as pessoas, devendo ir de encontro às negligências sociais, contribuindo para o enfrentamento de práticas psicológicas contrárias aos direitos humanos. O Código de Ética da Psicologia, em seu princípio fundamental I, afirma que a categoria baseará o seu fazer psi no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiada nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os direitos humanos indicam o caminho para uma atuação profissional condizente com o Código de Ética da Psicologia.
É preciso refletir cotidianamente sobre o nosso fazer psi: nossa atuação profissional propicia a ampliação dos direitos e da autonomia dos sujeitos ou suscita preconceito e realiza a manutenção de um pensamento hegemônico que exerce discriminação e opressão? Indo além, é preciso dimensionar também: quem são os humanos que entendemos ter direito?
Nessa perspectiva, o racismo estrutural opera como um projeto de Estado que promove desigualdades que dão forma ao desamparo social vivenciado pela população negra no Brasil. Os direitos humanos, desde sempre, foram negados a grupos sociais entendidos como perigosos e violentos. Considerando o panorama histórico-social do Brasil, bem como sua dimensão colonial em que determinados sujeitos são categorizados como humanos ao passo que outros seriam não humanos (Fanon, 2008), a falta de garantia de direitos escancara a desigualdade social na sociedade brasileira. O racismo é direcionado a populações não-brancas, pobres e periféricas. A combinação dessas categorias analíticas determina quem vive e quem morre. Trata-se, então, de uma violação nos termos da necropolítica proposta por Achille Mbembe, o Estado escolhe aqueles que detêm o direito à vida e aqueles que não o têm (Mbembe, 2018). A juventude negra, pobre e periférica, em especial, tem seus direitos negligenciados pelo Estado.
A Psicologia, além de não pactuar, precisa enfrentar o racismo estrutural em sua prática cotidiana. A Resolução CFP nº 018/2002, que estabelece normas de atuação para profissionais em relação ao preconceito e à discriminação racial, guia para uma atuação conforme os princípios éticos da profissão e contribui para uma reflexão sobre o preconceito e para a eliminação do racismo. Estudar direitos humanos, ao longo da formação em Psicologia, indica que tais documentos devem estar presentes nas ementas das disciplinas.
Na esteira desse pensamento, a Referência Técnica para atuação de Psicólogas(os) junto aos Povos Indígenas nos convida a pensar sobre a humanidade para além do referencial eurocêntrico. Ailton Krenak destaca como a destruição ambiental, como o desmatamento e a contaminação dos rios afeta diretamente as comunidades indígenas, mostrando como o racismo ambiental e o racismo social estão interligados. Em suas falas e escritos, Krenak busca não apenas denunciar essas formas de racismo, mas também inspirar uma reflexão sobre a necessidade de respeito à diversidade cultural e aos direitos dos povos indígenas, além de promover uma mudança de paradigma em relação à nossa relação com a natureza e com as diferentes culturas. Krenak destaca que o racismo contra os povos indígenas se faz através da invisibilidade cultural, em que as crenças, práticas, tradições e história dos povos originários são frequentemente marginalizados e desvalorizados pela sociedade dominante; pelo desrespeito aos territórios indígenas que resulta na falta de reconhecimento aos direitos territoriais e contribui para a perda da identidade e da conexão dos povos indígenas com suas terras ancestrais. Estereótipos, preconceitos, violência, discriminação e negligencia governamental também são formas que perpetuam o racismo contra os povos indígenas.
A partir do movimento contra hegemônico, é possível a composição com outros modos de viver em sociedade, reconhecendo e promovendo uma nova cosmopercepção de mundo. As mais variadas manifestações culturais das etnias indígenas, nos impulsionam a pensar diferentes práticas sociais que favoreçam o Bem Viver dos povos indígenas, na perspectiva integral dos direitos humanos. O direito à saúde, à terra, à educação e à autodeterminação, bem como denunciar violações de direitos humanos e discriminação, faz-se compromisso também da nossa categoria profissional.
No tocante às minorias de gênero e sexualidade e reafirmando o compromisso ético-político da Psicologia, destaca-se como falta ética categorizar como patologias as identidades e expressões de gênero não cisgêneras e as orientações não heterossexuais, tampouco atribuir a pluriversidade sexual a traumas de infância, estrutura familiar ou influência de pessoas próximas. A Resolução CFP 01/2018 em seu Art. 8º menciona "é vedado às psicólogas e aos psicólogos, na sua prática profissional, propor, realizar ou colaborar, sob uma perspectiva patologizante, com eventos ou serviços privados, públicos, institucionais, comunitários ou promocionais que visem a terapias de conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero das pessoas transexuais e travestis".
Neste sentido, sobre o acesso das pessoas trans e travestis à saúde, Favero (2020) questiona o diagnóstico necessário para acessar o processo transsexualizador, destacando sua inclusão na CID-9 há 40 anos e sua continuidade no DSM-5, apesar de uma mudança de nome de “Transtorno de Identidade de Gênero” para “Disforia de Gênero”, mantendo requisitos semelhantes. A autora continua:
Dar outro nome para uma questão que permanece ‘a mesma’ não faz com que se despatologize a transexualidade” (Favero, 2020, p.73).
Ainda no tocante aos manuais diagnósticos norte-americanos, o DSM-5 ainda prevê que crianças designadas como “meninas”, teriam aversão a brincadeiras e vestimentas consideradas femininas, como brincar de bonecas, por exemplo, e vice-versa. A CID-11, diferentemente do DSM-5 (que estipula 6 meses de sintomatologia), estabelece o mínimo de 2 anos de sintomatologia, demonstrando controvérsia no que concerne ao discurso despatologizante. Sendo assim, se a transexualidade não é mais uma questão de doença e sim de saúde, qual é a importância de se observar determinado gênero por um período de tempo? Ademais, se uma categoria diagnóstica precisa ser universal, como categorizar algo que é próprio de determinado contexto, como feminino e masculino, por exemplo? Uma criança dizer-se trans é sinônimo de preocupação perante às ciências psis, mas denominar-se pessoa cisgênera não, já que esta é a “normalidade”. Aqui, o corpo saudável é o corpo cisgênero. A cautela em relação à transexualidade “infantil” advém da herança médica que atina o desvio da norma como um risco (Favero, 2020)
Além disso, técnicas que se propõem a curar as lesbianidades, homossexualidades, bissexualidades, travestilidades, transexualidades e intersexualidades não são condizentes com o Código de Ética Profissional da Psicologia, tampouco com os direitos humanos. São práticas que não corroboram com a autonomia do sujeito, muito pelo contrário, geram sensação de vergonha, desadequação e sofrimento tanto físico quanto psíquico por não reconhecer e respeitar a pluriversidade das existências de gênero e sexualidade. Resultando, portanto, na violação dos direitos humanos.
Tendo em vista a falta de garantia de direitos humanos para parcelas específicas da população brasileira, nossa atuação profissional assegura os direitos humanos de todas as pessoas? O exercício profissional da Psicologia nas políticas públicas convoca a uma postura de defesa intransigente dos direitos humanos. Há uma dimensão que desumaniza as pessoas pobres, cotidianamente. A prática profissional a partir da defesa dos direitos humanos preconiza uma postura de enfrentamento da tutela do estado sobre corpos e vidas em situação de vulnerabilidade. A Psicologia tem papel fundamental na mudança de perspectiva de como as políticas públicas percebem os sujeitos atendidos. Pautar direitos para todas as pessoas é nossa tarefa cotidiana e deve estar presente nos debates desde a formação.
A Psicologia, bem como a categoria, exercem vultosa função de lançar luz aos mecanismos subjetivos que legitimam práticas sociais que favorecem ou mutilam os direitos humanos, além de ter o compromisso ético-político não só de promover o respeito à pluriversidade, mas também de combater qualquer prática que seja contrária aos direitos humanos. É atribuição da categoria profissional compreender, respeitar e promover a autonomia do sujeito. Assumindo essa responsabilidade, entramos na luta pela garantia dos direitos humanos a todas as pessoas e não apenas a segmentos específicos da sociedade.
Portanto, além dos aspectos objetivos no que tange à desigualdade social, nós, enquanto profissionais, precisamos considerar os fatores subjetivos pertinentes aos direitos humanos, seja em sua garantia, seja em sua violação. Por isso, quando falamos sobre uma Psicologia pautada nos direitos humanos, estamos defendendo uma ciência e profissão politicamente engajada e que se coloca lado a lado com os movimentos sociais.
REFERÊNCIAS
FANON, F. Pele negra máscaras brancas. Salvador ed: Edufba, 2008. (Trabalho original publicado em 1952)
MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: ed n-1 edições, 2018.
FAVERO, S. Crianças trans: infâncias possíveis. Salvador: Editora Devires, 2020.
Resolução CFP nº 018/2002
Resolução CFP nº 01/2018
Tentativas de aniquilamento de subjetividades LGBTIs - Conselho Federal de Psicologia
Relações Raciais Referências Técnicas para a atuação de psicólogas/os – CREPOP / Sistema Conselhos de Psicologia
Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas/os junto aos Povos Indígenas – CREPOP / Sistema Conselhos de Psicologia