O Colégio Estadual São Borja (Cesb) não poderia ser um local mais apropriado para acolher o debate ocorrido no último sábado (19) sobre direitos e cuidados com a população LGBT: afinal, é justamente na escola, com mais frequência no ensino médio, que ocorre a “expulsão simbólica” das pessoas trans do convívio social. O destino da maioria, então, acaba sendo a prostituição.
As estatísticas apresentadas no seminário “Psicologia e a garantia de direitos e cuidados com a população LGBT” não deixam dúvidas sobre o papel fundamental que a escola tem a desempenhar. Estimativas da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) apontam que sete entre cada dez travestis do país não concluem o ensino médio. Dessas, apenas 6% conseguem acesso à uma universidade.
“Isso mostra que o Estado brasileiro simplesmente ignora a existência dessas pessoas, que somam hoje cerca de 8 milhões de indivíduos no Brasil. Sem acesso a direitos fundamentais, como escola e saúde, não admira que haja uma epidemia de assassinatos de travestis no país e que a expectativa de vida seja a metade de um brasileiro considerado comum”, explicou o psicólogo Izaque Ribeiro, professor da URI, colaborador do CRPRS e coordenador do coletivo Transex – Transvalorando Sexualidade (s).
O debate reuniu um contingente expressivo de pessoas LGBT, psicólogas e psicólogos, estudantes e integrantes das redes institucionais de atendimento. Os dados da violência transfóbica no Brasil são alarmantes, como alertou Izaque: até julho de 2017 foram 115 assassinatos notificados – a maioria deles, como adverte a Antra, com características de crueldade. O Brasil continua sendo o país que mais mata travestis no mundo em termos absolutos e o quarto em relação ao tamanho de sua população.
Responsável por uma pesquisa acadêmica sobre a inserção social das populações trans, o psicólogo também advertiu para a baixa ressonância do tema na formação das/os profissionais de Psicologia no país. Segundo Izaque, é preciso propor políticas que naturalizem a diferença ao invés de valorizar práticas conciliatórias, que reforçam a tese de “apagamento” da população trans. “A diferença é negada por todos nós. Por isso é preciso reforçar as campanhas pela criminalização da homotransfobia”, disse.
O conselheiro do CRPRS Angelo Brandelli Costa, professor de Psicologia Social do programa de pós-graduação da PUCRS, alertou para o conceito de “estresse de minoria” que atinge a população LGBT, especialmente as pessoas trans. “É um agravo de saúde adicional, causado pela exposição direta ao preconceito, e pela percepção de que não serão aceitos, que causam sentimentos e crenças negativas nessas pessoas”, explanou.
O impacto na saúde mental é devastador: pesquisa realizada pelo psicólogo, com amostras de pessoas trans atendidas em hospitais públicos no Rio Grande do Sul e em São Paulo, apontou que em média 70% dessa população já tentou o suicídio – um índice 15 vezes superior ao da população comum. Os registros de depressão variam de 60% a 85%, dependendo da característica de gênero adotada.
Além disso, nove em cada dez indivíduos entrevistados já sofreram algum tipo de violência – física ou verbal. Desses, mais da metade relataram episódios ocorridos na escola, praticados por colegas, funcionários ou professores. “A psicologia da família, infelizmente, se preocupa muito pouco com essa realidade”, lamentou Angelo.
No atendimento em saúde, a violência não parece menor. Os dados colhidos pela equipe do professor mostraram que 9% dos profissionais do sistema público negaram atendimento a indivíduos trans, 19% usaram linguagem ofensiva e 38,5% se recusaram a chamá-los pelo nome social – um direito garantido por lei desde 2016. Devido a esse cenário, quase metade das pessoas trans entrevistadas disseram que não buscam atendimento médico na rede pública mesmo que necessitem.
O seminário teve a participação da travesti Rafa Ella Matoso, acadêmica do curso de Ciências Humanas da Unipampa em São Borja. Autodeterminada como não-binária (pessoa trans que está fora do espectro de gênero masculino ou feminino, embora mantenha aspectos de masculinidade e feminilidade), Rafa Ella participou de uma roda de conversa em que contou sua experiência.
“Nasci homem, nasci para ser um homem hetero destinado a dominar o mundo. A se impor pela força. Existia um projeto para mim, só que esse projeto não me contemplava. Quando comecei a dar os primeiros indícios de que iria por outro caminho, vi que as dificuldades seriam muito grandes”, relatou.
Rafa rejeitou o tom jocoso com que as travestis em geral são tratadas. “Não se trata de uma brincadeira. Todos os dias, ao acordar, penso nos empecilhos que terei pela frente. Se vou voltar para casa à noite. Ou, então, que tipo de marcas vou trazer. A gente sofre bastante”, disse.
Também relatou a prevalência da prostituição entre as populações trans, causadas pela expulsão da família e, posteriormente, da escola. Segundo dados da Antra, apenas 4% das transexuais brasileiras obtêm um emprego formal no mercado de trabalho. “Se não estamos no nosso não-lugar da prostituição, feito para nós, então estamos incomodando. E por isso merecemos ser tratadas com violência”, avançou.
O debate reuniu outras experiências de pessoas trans, e também de indivíduos cis, que relataram casos de agressão física ou psicológica por não seguirem o padrão de aparência e comportamento determinados pela heteronormatividade. Como o caso da travesti e universitária Cecília Blanco, que precisou “apagar” sua condição no colégio onde estudava, em Rosário do Sul, para conseguir terminar o ensino médio. “Se não fizesse isso, teria caído na marginalidade ou na prostituição, como a maioria de minhas colegas de escola que não conseguiram concluir seus estudos”, narrou.