A luta contra todas as formas de sofrimento relacionado à orientação sexual e identidade de gênero foi tema de mesa de conversa promovida pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) na última sexta-feira, 22/05, em Brasília. O debate, transmitido via Internet, contou com a participação de ativistas dos movimentos sociais, que falaram sobre as violências simbólicas e físicas vividas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros e pessoas intersexuais e suas relações com a Psicologia. O evento marcou a semana em que se comemorou o Dia Internacional de Luta Contra a Homofobia, 17 de maio.
Apesar de as homossexualidades terem sido despatologizadas ainda na última década do século XX, estas populações ainda vivem, diariamente, constrangimentos, discriminação e vários tipos de sofrimento. Presente ao debate, Carlos Magno Fonseca, da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), destacou que a sociedade exclui os grupos que fogem à norma da heteronormatividade. “O preconceito é um mecanismo para manter uma sociedade desigual. Estamos em situação de subalternidade dentro desta sociedade.E isso tem o nome de homofobia – ou lesbofobia, gayfobia, pois existem especificidades da manifestação desses preconceitos”, ressaltou.
“A homofobia está institucionalizada quando o Estado não enxerga as pessoas LGBT como uma população que tem de ter direitos e cidadania, quando o Estado não tem ações afirmativas específicas de empoderamento para esta população”, disse. Fonseca comemorou as vitórias do movimento, mas sublinhou a atuação de um setor conservador da sociedade – com grande representação no Congresso Nacional – que pretende excluir a população LGBT. Ele lembrou, ainda, que não existe no país uma lei que criminalize as pessoas que cometem crime contra as pessoas LGBT, e que, a cada 28 horas, um homossexual é brutalmente assassinado no país (dados do Grupo Gay da Bahia).
No caso das transexualidades, a situação ainda é mais complexa, pois ainda são consideradas doenças. “Temos utilizado os mecanismos de luta para a construção da retirada dessas patologias dos códigos de classificação internacional de doenças e buscado refletir, repensar as nossas práticas profissionais (da Psicologia) no direcionamento da despatologização”, declarou a psicóloga e representante da Comissão de Direitos Humanos do CFP, Rebeca Bussinger, que mediou a mesa.
Para Luciano Palhano, do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat), a patologização das identidades transexuais marca a violência institucional e da sociedade perante esta população. “A homofobia se desmembra, e considero que mesmo com esta compreensão é importante marcar o sentido de que pessoas trans também podem sofrer violência dupla, homofóbica e transfóbica, pela questão do estigma. As pessoas trans, inclusive, também podem ser heterossexuais”, explicou. Ele destacou a violência simbólica diária sofrida por esta população nos olhares, gestos, negação de direitos, das identidades e das expressões de gênero. “Essa violência fere e mata, e não pode ser de forma alguma negligenciada. As pessoas trans reorganizam e desordenam a orientação de sexo e gênero, e desorganizar essa lógica é ameaçar a identidade de muitas outras pessoas, mesmo dentro do próprio movimento LGBT, isso faz com que a gente se transforme em alvo de agressão, violência e anulação”, lamenta.
A ativista Andreia Lais Cantelli, da Articulação Nacional das Travestis, Transexuais e Transgêneros do Brasil – ANTRA/PR, concordou ao apontar que a sociedade está historicamente hierarquizada pelo machismo, pela simetria de gênero e sexualidade – homem e mulher – e que existem outras possibilidades de se construir e viver práticas de sexualidade e gênero. Para ela, por não se enquadrar nesses padrões históricos, as pessoas LGBT acabam entrando em processos de exclusão, vulnerabilidade e violência.
Ela lembrou que o processo de estigmatização das pessoas transexuais e travestis se inicia já no ambiente familiar e, depois, no ambiente escolar. “As escolas estão preparadas para receber o homem com pênis e a mulher com a vagina. Este espaço não está preparado para receber as pessoas trans, que não aguentam a pressão e a violência e acabam saindo da escola, acabam sendo expulsas desse ambiente. E a escola vai dizer que a pessoa teve a oportunidade mas que ‘quis ir pra rua’. Na verdade, o processo de transfobia foi tão grande que a pessoa não aguentou a pressão e acabou por sair”, lamenta.
Já Luciano Palhano destacou, também, a violência institucionalizada por parte do Estado, com a ausência de pesquisas e políticas públicas, principalmente na área da saúde. “As pessoas não querem compreender como se configura esse corpo, quais são as especificidades que precisam ser tratadas na hormonização, na cirurgia. As pessoas trans vivem hoje no limbo onde o corpo dela não é visto, não é estudado, não é acessado. Mas o nosso lugar não é o limbo, nosso lugar é a cidadania”.
A Psicologia e o atendimento das pessoas LGBT
O papel da Psicologia e o processo transexualizador foram pontos em comum na fala dos ativistas. Para eles, os/as profissionais psicólogos/as devem rever a atuação junto às pessoas LGBT, tomando uma postura de auxílio emocional e psíquico e fugindo de termos e procedimentos que remetem à patologização, seja nos consultórios, na educação, na saúde ou nos serviços públicos em geral. Eles apontaram, ainda, a necessidade da inclusão do debate sobre gênero e sexualidade nos currículos dos cursos de Psicologia no país.
“Os profissionais da Psicologia não podem reproduzir termos como ‘transtorno’ ou ‘disforia’. Cabe aos psicólogos garantir a autonomia, tentar produzir consciência e parar de reforçar esses termos patologizantes como ‘desconforto com o próprio corpo’”, explicou Palhano. Para ele, o/a psicólogo/a não deve atribuir todas as formas de sofrimento à experiência trans. “As pessoas trans vão aos consultórios e todos os sofrimentos, toda a angústia são atribuídos à experiência trans. Mas a pessoa se compõe de várias dimensões e são essas dimensões que precisam ser trabalhadas pelo profissional da Psicologia”, observou, sinalizando que os/as profissionais precisam adotar a postura do CFP, que é do olhar despatologizante das identidades trans.
“A nota técnica do CFP é bem bacana, com olhar despatologizante em relação a outras categorias, mas não é o suficiente enquanto não fizerem com que esse olhar atravesse os profissionais de todo o país”, disse, solicitando que se criem estratégias para que a postura despatologizante chegue às universidades e serviços públicos em geral.
Para Cantelli, é preciso rever o processo transexualizador no país e o papel da Psicologia neste processo – para ela, uma “máquina de fabricação de corpos”. A representante destacou que as exigências e protocolos a serem cumpridos para o acesso ao sistema transexual no Sistema Único de Saúde acarretam outras formas e processos de violência. “Para que as pessoas transexuais entrem neste processo, devem passar por uma equipe multidisciplinar e ter seus comportamentos enquadrados dentro da norma heteronormativa. Se a pessoa trans possui ‘desvios’ que não correspondem à norma simétrica de gênero, esta pessoa não estará apta a continuar o processo transexualizador, que ainda dá ideia de começo e fim. No final, ela pode ser avaliada como transexual ou não, de acordo com os protocolos da equipe multidisciplinar”, lamenta. Para ela, o prazo para começar e terminar o processo transexualizador parece significar que, no final, a pessoa estaria “curada”.
Ela disse, ainda, que o processo transexualizador está preparado para receber apenas as pessoas que estejam dispostas a realizar uma cirurgia de mudança de sexo e que outros serviços, como acompanhamento hormonal, endocrinologia, acompanhamento médico, de orientação, não estão previstos isoladamente pelo SUS.
“As pessoas travestis e as pessoas trans são diferentes. Podem ter os mesmos anseios e trajetórias, mas não são iguais. Que os protocolos e atendimentos da Psicologia sejam mais flexíveis e não tão duros quanto é o processo transexualizador, que não contempla as diferentes vivências”, aponta.
Segundo Rebeca Bussinger, os profissionais da Psicologia podem assumir variados papeis na luta pela despatologização e contra as violências homofóbicas e transfóbicas. A mudança, para ela, deve passar pela formação profissional e pelo incentivo a pesquisas acadêmicas. “O profissional da Psicologia pode e deve conhecer não só as suas próprias resoluções, mas também de outras profissões, além daquilo que o movimento social tem pautado, inclusive se articular aos movimentos sociais. Temos o dever e o direito de estar nos espaços de luta brasil afora, trabalhando, pautando, reivindicando, enfim, questionando todos esses pontos”.
Site Despatologização das Identidades Trans e Travestis
O CFP lançou, também no dia 22, o site especial sobre a Despatologização das Identidades Trans e Travestis, projeto integrante da campanha iniciada em 2014, e que contará com vídeos, links para legislação relacionada (nacional e internacional), área com indicações de blogs/sites de trans que contam suas experiências de vida e transformações, entidades, associações, empresas, fundações amigas da questão da despatologização das identidades trans – além de área destinada a exemplos de atuação alternativa de psicólogos e psicólogas nos ambulatórios e equipes do SUS.
Conheça o site aqui. Fonte: www.cfp.org.br