O Sistema Conselhos de Psicologia, com base nos conhecimentos da Psicologia como ciência; na regulamentação do exercício da profissão, cujos princípios são pautados na Constituição Federal e na Declaração Universal dos Direitos Humanos; na defesa intransigente dos direitos de crianças e adolescentes e do desenvolvimento de políticas públicas consistentes e coerentes com os demais marcos legais e profissionais, apresenta argumentos que se opõem aos Projetos de Lei que tramitam no legislativo em todos os níveis, que dispõem sobre atividades de reparação de danos por alunos e seus pais no ambiente escolar, visando impedir retrocessos e contribuir para que as conquistas dos direitos de crianças e adolescentes sejam mantidas.
Esta Nota de repúdio surgiu em função do conhecimento da Lei municipal de Campo Grande/MS 5603/2015 e do Projeto de Lei Estadual – PL/MS 219/2015, denominado “Lei HARFOUCHE” que dispõem sobre este tema. Preocupa-nos, dentre outros aspectos, a visão de que a indisciplina recebe conotação de ato infracional. Da mesma forma, o preconceito fica explícito ao considerar apenas a escola pública como alvo da lei e do Projeto de Lei supracitados, demonstrando clara discriminação entre as populações estudantis de escolas públicas e privadas.
No que se refere à garantia dos direitos de crianças e adolescentes na nossa sociedade vem somar-se aos recorrentes retrocessos apresentados como alternativas, eminentemente judicializantes e sancionatórias, travestidas de ações educativas. Há uma tendência no uso de terminologias e aportes conceituais que evidenciam a judicialização e criminalização das relações escolares na utilização recorrente de termos como: “penalidade”, “registro de ocorrência”, “reparação de danos”, “infração”, “revista do material”, etc., a redação evidencia o caráter exclusivamente punitivo e não educativo como base da proposição.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) oferece diretrizes para o processo educativo de crianças e adolescentes. Na ocorrência de atos infracionais, essa legislação prevê a responsabilização por meio das medidas socioeducativas, regulamentadas na Lei 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, ambos subsidiados pela Psicologia como ciência e profissão.
Destacamos a relevância do Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei nº 13.005/2014) e do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, que aprofunda questões do Programa Nacional de Educação e incorpora aspectos dos principais documentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, agregando demandas antigas e contemporâneas de nossa sociedade pela efetivação da democracia, do desenvolvimento, da justiça social e pela construção de uma cultura de paz.
Reconhecemos os desafios cotidianos enfrentados pela escola, especialmente no que se refere a considerar a diversidade constituinte do seu processo democrático. Construir ações coletivas, com a participação de toda a comunidade escolar, significa empoderá-la para o enfrentamento desses desafios. No entanto, os retrocessos que temos visto ferem o principio democrático. Num contexto marcado pela burocratização, hierarquização e engessamento as soluções totalitárias acabam se instalando como formas de solução.
Para além das questões que já estão postas pela legislação e que não têm se efetivado, destacamos que o julgamento da infração e a punição subsequente, ocorrendo dentro do ambiente escolar não são proposições que coadunam com as ações pedagógicas previstas para as escolas. Além do mais, a concepção de promoção da “responsabilidade” atrelada a práticas e mecanismos punitivos, muito comum em nossa sociedade, são desumanizantes e retiram a dignidade do sujeito (Guareschi, 2008). Especificamente em relação aos aspectos subjetivos de crianças e adolescentes a serem considerados nesses contextos, afirmamos que a punição como princípio não forma sujeitos saudáveis, especialmente aquelas sanções em que crianças e adolescentes se sentem humilhados, desvalorizados, ridicularizados. A formação ética do sujeito, isto é, a internalização de regras sociais deve ocorrer em processos de diálogo, de conscientização, de responsabilização e de formação, permeada por vínculos afetivos e relações humanizadoras.
Se a violência invade o espaço escolar, há que se considerar que ela é fruto da nossa sociedade contraditória que nega direitos ao longo do desenvolvimento de crianças e adolescentes e depois exige que eles se transformem em cidadãos exemplares. Nesse sentido, existem inúmeras experiências pelo país afora e em outros países, inclusive da América Latina, que comprovam que os sujeitos, para atingirem a cidadania, têm que ser protagonistas da sua história e não objeto de manipulação; tem que ter seus direitos respeitados e sua dignidade garantida; tem que ser responsabilizados com respeito e coerência.
A crença de que a escola, a partir da concepção punitiva, possa transformar a realidade social, não apresenta fundamentação pedagógica. A escola formadora não é a que promove castigos que retiram a dignidade dos seus alunos. A repressão e a punição, ao contrário da educação, produzem, em longo prazo, um efeito danoso em diversos aspectos, especialmente se o aluno não puder ressignificar seus atos.
A ameaça à família, no que se refere à perda dos benefícios sociais (entre outros), como argumento para a sua participação no processo educativo, assume uma natureza coercitiva e impositiva, o que vai na contra mão da construção de parceria entre a família e escola, por meio de estratégias pautadas na Psicologia e na Pedagogia.
É importante salientar que a Psicologia historicamente tem contribuído no campo da Educação e que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 3688/2000 aprovado em comissões especiais, no Senado e na Câmara Federal, prevendo a inclusão de serviços de Psicologia e Serviço Social na Educação Básica, que pode contribuir com a demanda apresentada.
Assim, repudiamos a realidade vivenciada no Mato Grosso do Sul e afirmamos a necessidade de conter a reprodução em outras unidades da Federação de legislações similares que afrontem os direitos de crianças e adolescentes.
A Psicologia brasileira coloca-se em defesa permanente pela transformação da realidade, não no sentido de perverter as funções sociais das políticas de educação, sobretudo no sentido de executar integralmente o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma Lei que já tem 25 anos.
“Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua ‘generosidade’ continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça.” (Paulo Freire)
Brasilia/DF, 12 de dezembro de 2015.
Sistema Conselhos de Psicologia