O Conselho Federal de Psicologia, por meio de sua Comissão de Direitos Humanos (CDH/CFP), vem a público se posicionar contra o Projeto de Lei 490/2007, que transfere do Poder Executivo para o Legislativo a atribuição de realizar demarcações de terras indígenas. Repudiamos essa e todas as outras tentativas de impor retrocessos e de efetivar ações que ferem os direitos dos povos originários.
O projeto de Lei 490/2007 é de autoria do deputado Homero Pereira e altera o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001 de 1973). O projeto de lei visa restringir a demarcação de terras indígenas àquelas que comprovarem ocupação datada de 5 de outubro de 1988 (ano da promulgação da Constituição Federal).
No dia 24 de maio de 2023, foi aprovado o Requerimento 1526/2023 do Deputado Zé Trovão (PL/SP) acerca do regime de urgência para a apreciação do PL nº 490/2007. A aprovação de requerimento de urgência se deu de maneira vertical, sem dialogar com os povos indígenas acerca da temática, indo na contramão do respeito ao meio ambiente e ao direito à terra, à vida e à saúde dos povos originários do país.
Compete à União, ou mais especificamente à FUNAI, demarcar as terras indígenas, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Ademais, a Constituição Federal ressalta que as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas destinam-se à sua posse permanente. Isso significa dizer que, além de ser juridicamente proibida a remoção dos povos indígenas, cabe a eles o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes em suas terras-territórios.
O processo para demarcação é de competência exclusiva do Poder Executivo/FUNAI, porque se trata de ação científica e administrativa relacionada ao reconhecimento formal e jurídico do direito dos povos indígenas a um bem que já lhes pertence: suas terras-territórios. A propósito, por lei, elas deveriam ter sido integralmente demarcadas até 1993. No entanto, cerca de 60% delas ainda não foram regularizadas [1]. São quase 30 anos de espera! Atualmente existem apenas 488 terras indígenas regularizadas, o que representa apenas 12,2% do território nacional [2].
A regularização desses territórios refere-se à efetivação de direitos fundamentais, inalienáveis, relacionados ao princípio da dignidade humana. Por meio dessa regularização se realiza a função social de preservar a propriedade coletiva de grupos em situação de vulnerabilidade e de proteger o patrimônio cultural imaterial dos diferentes povos indígenas. Assim, a regularização dos territórios indígenas tem finalidade pública relevante.
Não por acaso, na Constituição Brasileira, não há indicação de legislação infraconstitucional para que a demarcação seja realizada. Todavia, desde 1996, ela tem sido efetivada com base no Decreto nº 1.775, que estabelece que o grupo indígena deverá participar integralmente de todo o processo da regularização, o qual, segundo a FUNAI, inclui, entre outros, estudos científicos antropológicos de identificação e delimitação do território e elaboração de relatório circunstanciado, os quais são apoiados em pesquisas nas áreas ambiental, histórica, jurídica, agrária, cartográfica.
Quando demarcado, o território torna-se propriedade pública, coletiva, que não pode ser vendida, loteada, arrendada ou penhorada. Assim sendo, a demarcação das terras indígenas é uma ação contra a concentração fundiária e o uso privado de propriedade.
Logo, é possível dizer que garantir a demarcação das terras indígenas transcende a questão por si só já relevante, ou seja, a sobrevivência física, cultural e econômica dessa população. Tal demarcação também é estratégia para lidar com o combate à devastação ambiental, bem como para enfrentar o racismo contra os povos indígenas, além de preservar os direitos histórico-culturais transindividuais de toda a população brasileira. Assim sendo, visa ao direito à democracia, ou, ainda, realizar justiça social.
O PL 490 pretende atribuir ao Congresso Nacional a responsabilidade de legislar, apreciar, votar proposições legislativas sobre a regularização das terras-territórios indígenas, restringindo a função do Poder Executivo, representado pela FUNAI.
Ao propor esta mudança, além de coibir direitos dos povos indígenas, visa anular a única função constitucional atribuída ao Congresso Nacional: a de autorizar o aproveitamento dos recursos hídricos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas, desde que as comunidades indígenas afetadas sejam ouvidas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra. O Brasil promulgou a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais que, em conjunto com outros pactos internacionais ratificados pelo governo brasileiro, define o direito dos povos indígenas à autodeterminação, à manutenção de suas culturas e tradições, à proteção às terras indígenas tradicionais e o autogoverno indígena.
O PL 490/2007 possui 13 outros projetos apensados. Se aprovado, dará ensejo para que haja contato de não indígenas com povos indígenas em isolamento voluntário, o que é danoso para a saúde dos indígenas, bem como fomentará a exploração econômica, por intermédio da realização de garimpo, mineração, implementação de hidrelétricas e grandes empreendimentos agropecuários nas terras indígenas sem a previsão da consulta livre e prévia aos povos indígenas, direito garantido pela Constituição Federal. Isso coloca em risco os territórios indígenas e a natureza como um todo.
Ainda, essa junção de PLs apensados traz a contestação da demarcação de terras indígenas ao argumentar pelo Marco Temporal – uma tese refutada por juristas e pelo Movimento Indígena que aguarda decisão final do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365. “Não há justiça climática e futuro do planeta sem demarcação dos territórios ancestrais. Isso porque somos nós, povos indígenas, os verdadeiros guardiões das florestas. O Marco Temporal ignora a nossa existência antes de 1988 e coloca em risco a vida da população originária e de toda a humanidade”, diz Juliana Kerexu, coordenadora executiva da Apib pela Comissão Guarani Yvyrupa [3].
A gravidade da situação levou à mobilização de delegações de representantes de diversos povos indígenas no Acampamento Levante pela Terra, em Brasília, desde 7 de junho de 2021. Em 22 de junho de 2021, no protesto pacífico contra o PL 490/2007, foram violentamente reprimidos pela Polícia Militar. Este ano, lideranças e delegações que compõem a Articulação Nacional de Povos Indígenas do Brasil mobilizam-se para o Acampamento nos dias 5 a 8 de junho em defesa dos direitos e contra ao Marco Temporal, com a seguinte frase “Pela justiça climática, pelo futuro do planeta, pelas vidas indígenas, pela democracia, pelo direito originário/ancestral, pelo fim do genocídio, pelo direito à vida, por demarcação já: Não ao Marco Temporal!”. Leia a carta na íntegra aqui
A Psicologia se funda no compromisso com a defesa dos direitos humanos e com a “eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, conforme previsto pelo Código de Ética Profissional da(o) Psicóloga(o). Isso se traduz na defesa de direitos e políticas públicas relativas aos povos indígenas e suas vivências em diferentes contextos e etnias, que perpassam a pertença ao território como eixo basilar de seus modos de ser e viver. O respeito às Terras Indígenas deve ser compreendido como uma ação afirmativa e reparatória frente ao histórico de genocídio, escravização e expropriação dos povos indígenas ao longo do processo constitutivo do Brasil.
Diante disso, o Conselho Federal de Psicologia, por meio de sua Comissão de Direitos Humanos (CDH/CFP), manifesta sua solidariedade aos povos indígenas em nome da demarcação dos territórios indígenas, e se posiciona contrário ao PL 490/2007 e à tese do marco temporal.
Referências
[1] https://cimi.org.br/terras-indigenas/
[2] http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/demarcacao-de-terras-indigenas
[3]https://apiboficial.org/2023/05/17/apib-anuncia-tema-e-mudanca-na-mobilizacao-contra-marco-temporal/
Brasília-DF, 30 de maio de 2023.
Conselho Federal de Psicologia
Comissão de Direitos Humanos (2023-2025)
Nita Tuxá
Alessandra Almeida dos Santos
Andreza Cristina da Silva Costa
Alexander Morais de Oliveira
Ana Luiza de Souza Castro
Deivison Warlla Miranda Sales
Emilly Mel Fernandes de Souza
Geni Daniela Nuñez Longhini
Giulia Natália Santos Mendonça
Mônica Valéria Affonso Sampaio
Paula Rita Bacellar Gonzaga
Rafael Ribeiro Filho
Rogério Giannini
Marcelo Afonso Ribeiro
Fonte: Conselho Federal de Psicologia