A difusão dos conhecimentos produzidos pela Psicologia junto a diversos campos da nossa cultura é um fato, afinal, de psicólogo, médico e louco, todo mundo tem um pouco – ou, ao menos, acha que tem. “Escutar Mozart faz os bebês serem mais inteligentes. A adolescência é um período conflituoso e sempre marcado por tensões entre pais e filhos. Há uma crise inevitável pela qual todos temos de passar quando atingimos a faixa dos quarenta anos. Negação, raiva, barganha, depressão e aceitação são fases naturais e necessárias em todo processo de luto.” Quem nunca ouviu, ou até já falou, algo assim? Em filmes, livros de autoajuda, novelas e conselhos de vó, estão presentes ideias importantes da Psicologia. A questão é que, ao se popularizarem e serem retiradas de seus contextos de criação, essas ideias podem levar a conclusões equivocadas, e quanto mais polêmicos são os assuntos, mais e mais distorcidas podem ser as suas consequências.
No início do século XX, Freud propôs a existência da sexualidade infantil. Mesmo tendo afrontado os valores de seu tempo, ele contribuiu enormemente para uma desidealização da infância e para uma melhor compreensão sobre a formação e desenvolvimento do ser humano. Não mais o recanto de pureza e de inocência, a infância passou a ser pensada como um tempo de formação de um sujeito de desejo, dotado de vontade e que não ocupa posição tão angelical quanto se supunha. Se na aurora do século passado fazia sentido pensar nas figuras maternas como as maiores responsáveis pela inserção dos sujeitos na cultura e pelo acompanhamento do desenvolvimento infantil, as constantes modificações no mundo do trabalho, os espaços conquistados pelas mulheres nos últimos tempos e mesmo as reivindicações masculinas de participar diretamente da educação dos filhos, faz com que pensar infância, educação infantil, sexualidade e desenvolvimento humano, hoje, não possa ser feito com base nos mesmos termos com que se fazia em 1950. Mesmo assim, são frequentes chistes, piadas e jargões dizendo que, no caso de problemas com a criança, a culpa é sempre das mães. Tais piadas são, quase sempre, justificadas como sendo oriundas de teorias psicológicas.
Os avanços no entendimento sobre desenvolvimento psicológico infantil evidenciaram a necessidade de se investir em métodos e técnicas pedagógicas amparadas no reforço dos comportamentos desejáveis e não só na punição e repreensão das falhas. Associados a isso, os estudos sobre fatores estressores, bem como sobre aspectos importantes para estruturação de personalidade, exerceram forte influência sobre a criação de estratégias menos violentas de educação. Curiosamente, para um conjunto de pais e mães pelo Brasil, foi a Psicologia que os impediu de educar seus filhos, uma vez que já não é possível dar neles umas boas palmadas – que não eram santas, mas operavam milagres na correção das indisciplinas. Ao que parece, esse é o tipo de ideia sobre Psicologia que forma o pouco de psicólogo/a que todos somos.
Quando o Sistema Conselhos de Psicologia, reconhecendo o adolescente como um sujeito em desenvolvimento e entendendo a produção da criminalidade como complexa, multifacetada e relacionada à degradação das condições de vida de parte da população, posiciona-se contra a redução da maioridade penal, parte da população entende isso como a adoção de uma posição branda, imprudente e não condizente com a defesa de nossa sociedade, cada vez mais exposta à violência causada pelos “delinquentes juvenis”. Quando o Conselho Regional de Psicologia participa ativamente junto aos movimentos sociais de mobilizações para evitar o avanço de lógicas manicomiais sobre o campo da Saúde Mental, esse/a psicólogo/a em nós acaba reduzindo a discussão à briga de mercado entre psicólogos e psiquiatras. Será que o/a psicólogo/a do qual todos temos um pouco conhece essa parte da Psicologia?
A enumeração desses fenômenos foi feita pra destacar dois pontos: o primeiro, há um descompasso temporal e também compreensivo entre as proposições e os avanços da Psicologia e sua assimilação, acomodação e inserção na cultura; o segundo, as propostas da Psicologia podem nos levar à descoberta de verdades inconvenientes, e estas tendem a nos fazer questionar certezas e rever posições – seja como sujeito, seja como sociedade.
Sobre o primeiro, destacamos que é da natureza do conhecimento científico ser perecível, ou seja, ele é passível de constantes modificações, atualizações e aprimoramentos. Dito isso, é possível perceber que algumas noções que no entendimento do senso comum são oriundas da Psicologia já pereceram, graças ao trabalho cotidiano de pesquisadores/as e psicólogos/as. Usar esses conhecimentos ultrapassados para realizar leituras do mundo atual pode produzir efeitos equivocados e inúteis para a compreensão da realidade.
Quanto ao segundo, frisamos que o tipo de conhecimento produzido pela Psicologia tem o efeito de nos deixar sem chão, de questionar algumas de nossas verdades e de interrogar certezas. Ora, esse não é um processo fácil e sem incômodos. Desacomodar e dessacralizar algumas posições, fazer circular a dúvida, criar a possibilidade de nos reconstruirmos enquanto sujeitos e enquanto sociedade, mudar a pergunta e, com isso, abrir a possibilidade de respostas – eis aí uma parte da Psicologia que seria bom inserir no psicólogo que todos nós achamos que somos.
Área Técnica do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul