O crescimento dos discursos sobre violência e criminalidade anda de mãos dadas com uma cultura biologizada que desloca a atenção da necessidade de reformas sociais para o âmbito individual, com o argumento de proteger a população "normal" dos "indivíduos ameaçadores", como se a criminalidade estivesse inscrita no corpo dos sujeitos. A questão que deveria nos ocupar seriamente é o que essa população chamada "normal" tem feito pelos ditos "indivíduos perigosos".
Diante disso, vimos por meio deste manifestar nosso repúdio ao projeto de pesquisa a ser desenvolvido por pesquisadores de duas instituições de Ensino Superior da capital gaúcha que propõe mapear o cérebro de adolescentes que cumprem medida socioeducativa devido a homicídios praticados, tendo como objetivo investigar "a base biológica da violência". Questionamos os efeitos e as possíveis conseqüências do referido estudo em função de sustentar e fomentar um entendimento maniqueísta, reducionista e individualista das questões que envolvem o tema da criminalidade.
Inscrever a questão da violência no cérebro desses adolescentes traz ainda uma ameaça de afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pois, na medida em que se biologiza a questão, que tipos de alternativas ou tratamentos serão propostos para "controlar" esses indivíduos? O que será feito daqueles que, submetidos aos poderes e técnicas científicas, tiverem uma condição biológica que os coloca como "inimigos da sociedade"? Para além de reeditar aspectos de um controle biológico da população, do século passado, criando subpopulações de pessoas propensas ao crime, os discursos atuais da manipulação biológica podem ostentar uma promessa de segurança pública pautada no controle e alteração dessa condição pela utilização de técnicas que poderão facilmente envolver o aumento da utilização de psicofármacos, de eletroconvulsoterapias e de medidas cada vez mais punitivas e repressivas.
Precisamos ir além de dicotomias sobre achar causas biológicas ou sociais para entender as relações de poder, éticas e políticas que estão envolvidas na questão da violência e da criminalidade. Diante do tipo de estudo que está sendo proposto e dos resultados que dele poderão advir, é imprescindível questionar quais os benefícios e os beneficiários da pesquisa; quais as ameaças e ganhos advindos e quem sofrerá seus efeitos; quais os custos e quem arcará com os mesmos. Enfim, é necessário discutir, para além das capacidades técnicas e metodológicas da ciência, as questões políticas e éticas que devem orientar qualquer pesquisa, principalmente quando envolve pessoas já tão violentadas na sua dignidade. Um dos questionamentos viáveis neste contexto é sobre a escolha dessa população como "os" responsáveis pela violência contemporânea, utilizando critérios meramente jurídico-penais ou até mesmo raciais e morais.
Acreditamos que a questão criminal na contemporaneidade deva ser tratada na sua complexidade, sendo impossível chegar a certezas absolutas, objetivas e observáveis, tanto química quanto biologicamente, sobre a subjetividade humana, através da utilização de métodos exclusivos das ciências naturais a fim de produzir "verdades" unilaterais para algo que é de outra ordem.
Karen Eidelwein
Presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul