Confira dois artigos que debatem o projeto de pesquisa com adolescentes da Fase, publicados no jornal Zero Hora, edição de 26 de janeiro de 2008.
Miséria social, pseudociência e arrivismo, por Luis Guilherme Streb*
*Psiquiatra
Trabalhei quase três anos na Fase. Diariamente atendia 10 a 15 internos. Conheci centenas de jovens, cada um com várias consultas. Felizmente havia pouquíssimos homicidas. No início, eu mesmo me intimidava um pouco, mas controlei meus sentimentos e conseguia conversar com eles. Seus crimes aconteceram nas mais variadas circunstâncias, sempre relacionadas com tráfico e uso de drogas, vingança, roubo ou alguma doença cerebral prévia, como epilepsia ou retardo mental. Todos vinham de famílias desintegradas e violentas, e viviam há anos sob as mais difíceis condições psicossociais. O cenário geral confirma várias pesquisas em muitos lugares: existe uma relação causal direta entre privação afetiva ou abuso na infância e condutas sociopáticas na adolescência. Além disso, existe um agravante social importante no Brasil: a falta de cultura, ou seja, nos falta um conjunto de crenças e práticas comuns que promovam o desenvolvimento pessoal e a coesão social, e que estimulem a educação e a segurança dos indivíduos. Prova eloqüente disto é o número enorme de servidores públicos, políticos, administradores e cidadãos comuns presos todos os dias por conduta criminosa.
Escrevo sem conhecer o projeto de pesquisa recentemente noticiado, envolvendo adolescentes da Fase (fica a sugestão de disponibilizá-lo em algum site, se ainda não está, principalmente se for financiado por dinheiro público). Como um bom projeto de pesquisa, deve apresentar uma hipótese. Qual é? Depreendo que esta hipótese possibilite encontrar correlações estatisticamente significantes entre genética e neurologia e comportamento violento, segundo o texto da reportagem na ZH de 24 de janeiro. A julgar pela notícia no site da Associação Paulista de Medicina, existe grande confusão conceitual entre os envolvidos, além de uma situação política, o que aliás complica deveras uma pesquisa que pretende ser ciência isenta. Termos como "políticas públicas" e "prevenção" já são usados antes mesmo dos resultados da pesquisa.
Se for assim, a idéia, cientificamente, é obtusa e bizarra (seus aspectos políticos merecem análise mais detalhada). É como chover no molhado ou reinventar a roda. Os determinantes psicossociais do comportamento agressivo já são sobejamente conhecidos através dos inúmeros trabalhos já publicados, aqui e mundo afora. Fatores orgânicos, genéticos e neurológicos também já são conhecidos, verificados em amostras de indivíduos muito mais adequadas do que esta em questão. Previsivelmente, revelaram-se com peso ínfimo e desprezível em comparação com os fatores familiares e psicossociais no contexto populacional geral. Introduzir adolescentes em tubos de ressonância nuclear para ver seus cérebros, ou determinar seu genoma, é um disparate em nosso contexto de carência de recursos; principalmente diante das histórias de vida desses guris que não tiveram nada de bom na vida.
Suponhamos que os cientistas professores doutores políticos encontrem lesões cerebrais ou defeitos genéticos em seus probandos. Como avaliar? Como entender? Como "pesar"? Explicaria a epidemia assassina e sociopática em que vivemos? Isto deve estar detalhado no projeto.
Diante do sarcasmo de um sábio geneticista local, só nos resta concluir que alguns cientistas têm, sim, sua função mental no pé.
Resistência à ciência, por Homero Dewes*
*Professor do Instituto de Biociências, UFRGS
Enquanto um neurobiologista brasileiro que trabalha nos Estados Unidos tem seu feito científico celebrado mundialmente, ao expressar processos mentais em movimentos robóticos, dois neurobiologistas brasileiros que trabalham em universidades de Porto Alegre estão tendo suas pesquisas execradas por um grupo de profissionais do campo das ciências sociais que repudiam os avanços da neurobiologia no estudo do comportamento humano.
Para os signatários da nota de repúdio aos estudos da atividade neurológica de adolescentes infratores, proposta por pesquisadores da PUCRS e da UFRGS, aparentemente, as questões científicas relativas ao comportamento juvenil brasileiro já foram todas resolvidas pela legislação em vigor, a qual determina que a violência juvenil seja resultado das vicissitudes sociais, políticas e econômicas da sociedade brasileira injusta e que nada tem a ver com a atividade cerebral dos indivíduos envolvidos.
Para quem pouco tempo ou interesse tem de acompanhar os avanços científicos, seja nas disciplinas do seu próprio campo de trabalho, seja em outros campos, pode ser novidade saber que um dos temas de pesquisa apontados pela comunidade científica internacional dentre os mais dinâmicos e promissores para este século é o estudo e o entendimento das bases biológicas da consciência. Nesta fronteira científica está o entendimento dos processos neurológicos associados aos sentidos, aos sentimentos e ao instinto da moral. Com as tecnologias de ressonância hoje disponíveis, a cada dia mais se aprende sobre o que se passa no cérebro, a cada memória, a cada desejo e a cada ação.
Obstruir no país a pesquisa em neurobiologia comportamental é pretender banir das nossas universidades a pesquisa científica contemporânea e de vanguarda, condenar a ciência social brasileira à marginalidade e o profissional social brasileiro ao obscurantismo.
Num país em que organizações não-governamentais destroem campos experimentais impunemente e em que laboratórios científicos são queimados criminosamente, a emergência de oposição fanática e organizada à neurobiologia comportamental no país é um processo muito sério e potencialmente catastrófico para a ciência, para os cientistas e para o povo brasileiro. Melhor seria, para todos nós, se abríssemos nossas cabeças para novos conhecimentos e aprendêssemos a celebrar com orgulho os feitos dos cientistas brasileiros, enquanto realizados na sua própria terra.