A etapa Sul do 9º Seminário Nacional de Psicologia e Políticas Públicas, promovido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) em parceria com os Conselhos Regionais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, debateu nesta quinta-feira, 28/06, Psicologia, educação, laicidade e o enfrentamento ao conservadorismo. O evento foi realizado no Teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre.
Compondo a mesa de abertura, a presidente do CRPRS Silvana de Oliveira destacou a importância de promover uma reflexão sobre o momento atual que o país vive, de desmonte das políticas públicas, precarização das condições de trabalho das/os psicólogas/os e restrição de acesso a direitos da população. “Precisamos nos reunir para nos fortalecermos, avançar neste debate, para ganhar mais fôlego nessa luta que é bastante árdua”. A conselheira do CRPSC Jaira Rodrigues destacou a grande oportunidade de defender políticas públicas voltadas para a garantia de direitos sociais. “A Psicologia tem participado da construção de políticas públicas visando à garantia de bem-estar da população e contribuindo para o desenvolvimento social”. Para o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Rogério Giannini, o conservadorismo, presente em nossa sociedade atualmente, precisa ser enfrentado. “Percebemos uma imposição de uma agenda moral sobre uma agenda social, o que gera certa confusão na sociedade e mascaram interesses particulares. A Psicologia pode contribuir para o desmascaramento desses processos”.
Pela manhã a discussão sobre psicologia, educação e laicidade teve como enfoque as discussões de gênero com a mesa “Psicologia, Educação e relações de gênero: a laicidade em foco”. A psicóloga conselheira do CRPRS Priscila Pavan Detoni, presidente da Comissão de Direitos Humanos, doutora em Psicologia Social e Institucional (UFRGS) e docente na UNIVATES, esclareceu que o Estado laico não é ateu, mas sim um Estado que aceita a pluralidade religiosa. Diante disso, Priscila citou exemplos de ações do Estado que divergem dos princípios da laicidade. “O Estado laico não deveria delegar seu papel a instituições religiosas, mas temos visto cada vez mais a aproximação do Estado com Comunidades Terapêuticas de cunho religioso. Também temos observado o retorno ao assistencialismo ligado a questões religiosas e que está ocupando o lugar de políticas de assistência social”. Para Priscila, a/o psicóloga/o precisa atuar no enfrentamento dessas questões, para isso deve potencializar esses espaços que ocupa nas políticas públicas e em instâncias como o Controle Social.
O psicólogo Ematuir Teles de Sousa, conselheiro do CRPSC, mestre em Psicologia (UFSC), membro da Comissão de Direitos Humanos do CFP, falou sobre a necessidade de a Psicologia trabalhar pela garantia dos direitos humanos nas políticas públicas, destacando o compromisso ético e político da profissão. “Para isso, é preciso em primeiro lugar reconhecer o lugar de privilégio e entender que a constituição de categorias de sexo e gênero é feita com base em padrões culturais. Por isso, precisamos apostar em políticas educacionais que considerem a diferença, que questionem esses padrões”. Só assim será possível realizar o enfretamento das ideologias de gênero embasadas em práticas morais e preconceituosas que surgem pelo país em diversos projetos de lei.
O psicólogo Pedro Paulo Bicalho, conselheiro do CFP, doutor em Psicologia (UFRJ) e pofessor da UFRJ, apresentou uma equação que demonstra a constituição da subjetividade do brasileiro, mostrando como a subjetividade do brasileiro é construída permeada de desigualdades e violência, sobretudo contra mulheres, juventude negra e população LGBT. “É por meio das políticas públicas que podemos mudar essa equação, tornar o país menos desigual”. Para Pedro Paulo, a educação deve ser vista como uma ação política e necessária para a transformação social e enfrentamento do fundamentalismo, que se manifesta pela imposição da verdade, pela disseminação do ódio – que produz medo – e pela vontade de punir as diferenças. “Esse fundamentalismo anula e tira a voz do outro. Cabe à Psicologia oferecer resistência a isso apostando no diálogo como estratégia para esse enfrentamento, tendo o cuidado de não estimular discursos de ódio, impor verdades ou punir em nome da laicidade”.
Nos debates da tarde, o tema foi a medicalização em contexto escolar. A psicóloga Flávia Cristina Lemos, da Comissão de Direitos Humanos do CFP e professa de Psicologia na Universidade Federal do Pará, utilizou o conceito do filósofo francês Michel Foucault para criticar a estratégia de controle operada pela medicina social. “No aspecto autoritário, o Estado gera, a partir da medicina social, uma maneira de operar um dispositivo de segurança biopolítico na perspectiva de um campo racista de sociedade. Esse mecanismo é utilizado frequentemente para exterminar, segregar, interditar, calar e excluir”, pontuou a especialista, pós doutora em Psicologia e Subjetividade pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Segundo Flávia, a estratégia da medicalização é voltada para grupos e corpos classificados como impuros, que podem potencialmente causar risco ou perigo à sociedade. “Na educação, o alvo contemporâneo são as crianças-problema, que têm dificuldade de concentração e de aprendizagem. Há uma relação direta entre medicalização e liberalismo, na medida em que o modelo de escola é voltado para o mercado”, disse. A especialista também estendeu o conceito ao campo das ideias, com a estratégia de patologizar a subversão. “O cientificismo é uma forma de fazer guerra biopolítica, ao esterilizar mentes inquietas que ousam pensar criticamente, que ousam contestar. Nesse sentido, a quem serve ensinar professoras de educação infantil a traçar quadros psicopatológicos de crianças? Fica claro que se trata de uma encomenda do poder para identificar previamente os quadros desviantes”, afirmou. E concluiu: “Historicamente, as sociedades mais medicalizadas foram justamente as que operaram os regimes totalitários”.
A psicóloga Queila Abigail Trojack, da Comissão de Psicologia Escolar do CRP do Paraná e professora das Faculdades Facel, também identificou na estratégia da medicina social um aparato de adaptação ao mercado de produção e consumo. “Quem não consegue ingressar nessa linha de ensino e de rendimento não é bom aluno. Acaba tachado como aquele que não para quieto, que não aprende, que tem déficit de atenção ou de hiperatividade. Mas de onde surgem essas estatísticas? A educação precisa questionar seu papel nesse contexto”, argumentou. Queila usou como base de sua ponderação a pedagoga italiana Maria Montessori, que desenvolveu um método de ensino caracterizado pela autonomia, liberdade e respeito ao desenvolvimento natural das habilidades físicas e intelectuais de cada criança. Segundo ela, o lugar de psicólogas e psicólogos na educação deve ser de mediadores críticos das políticas públicas. “A criança-problema tem que ter alguma patologia? Por que ela não pode ser só uma criança? Há um cunho político altamente político nessa intervenção, na medida em que a Psicopedagogia foi inventada para dar conta dessas crianças que são diagnosticadas com doenças subjetivas. Precisamos, portanto, nos apropriar do conceito de medicalização para contextualizar esse aparato. Adulto sadio é apenas aquele que produz? Que conceitos são esses?”, questionou.
O psiquiatra infantil Ricardo Lugon Arantes, professor do Instituto Educacional Novo Hamburgo, disse que a estratégia da medicalização não tem a ver necessariamente com a prescrição de fármacos. “O problema é achar que o papel do professor seja rastrear problemas e doenças e encaminhar para um neurologista crianças que não aprendem. A maioria, entretanto, são questões que envolvem a própria escola. Depois que entram no circuito da medicalização, é difícil retirar”, disse. Ricardo alertou que nem toda prescrição medicamentosa deve ser tratada como medicalização e celebrou o caminho inverso da desmedicalização, como a exclusão da transexualidade do Cadastro Internacional de Doenças 11 (CID 11). “O conceito de medicalização vem se tornando excessivamente abrangente e perdendo a eficácia teórica, quase um clichê da análise social”, afirmou. Mas alertou que a demanda escolar por laudos psicológicos não é apenas indevida, como ilegal. “O laudo é um objeto carregadíssimo de significados e valores. A escola não pode pedir laudo psicopatológico, quando o faz está infringindo gravemente a Constituição. É compreensível a angústia de um professor que não sabe o que fazer com um aluno, mas construir redes de supervisão e proteção diminui essa sensação”, avaliou. O psiquiatra também explicou seu conceito de “descabentes”, que se refere a crianças lançadas no circuito e que não cabem no modelo mercadológico de escola.
A conselheira federal Marisa Helena Alves, do Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop), fez o encerramento do evento chamando a atenção para a situação de desmonte das ações de inclusão social do país construídas ao longo dos últimos anos. “Tivemos aqui várias sinalizações de qual deve ser nosso papel nesse contexto: de resistência. Só assim poderemos manter o processo de construção. O desafio agora é pensar novos modos de resistência e enfrentramento”, disse.
O 9º Seminário Nacional de Psicologia e Políticas Públicas tem o objetivo de orientar a categoria e a sociedade sobre atuação em Educação pela perspectiva da laicidade e dos direitos humanos.