A realização do VII Encontro Estadual de Saúde Mental, entre os dias 15, 16 e 17 deste mês, em Porto Alegre, teve um de seus momentos mais marcantes no segundo dia, quarta-feira, quando vários militantes do movimento anti-manicomial protestaram contra mudanças de última hora. O Manifesto distribuído aos participantes do evento, no auditório da Sogipa, onde foi realizado o Encontro, explicava: “A discussão sobre as diferentes formas de tratamento a usuários de álcool e outras drogas viu-se reduzida à temática do crack, referida a um modelo manicomial de cuidado, sem consideração à perspectiva de redução de danos, da atenção psicossocial, por um cuidado em rede”.
Além do CRPRS, o documento também era assinado pela CSM-RS; CES-RS; FGSM; CREFITO; CRESS e Escola de AT da UFRGS. Vários militantes, portando “nariz de palhaço” no rosto, distribuíram o Manifesto pela platéia e, posteriormente, expressaram sua inconformidade com a situação, quando a mesa deu a palavra aos participantes. A mesa “Desafios do Cuidado em Álcool e Drogas – crack”, foi composta pelo psicanalista Gustavo Soares, na coordenação, e pelos debatedores Luis Coronel, psiquiatra e diretor do Hospital São Pedro, e Andrea Messias, fisioterapeuta e participante do GT Crack, da SES. A monotonia do discurso manicomial e repressivo só foi quebrada pela chegada do psicólogo paulista Décio Castro Alves.
Voz mais aberta às novas abordagens da questão, este consultor do Ministério da Saúde e gestor do Grupo de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de São Bernardo do Campo (SP), a presença de Décio foi uma vitória dos setores que assinaram o Manifesto.
Questionando o crack
Décio começou por questionar números apresentados por Luis Coronel, de que o crack constitui uma epidemia e que 0,5% da população gaúcha já seria dependente desta droga, enquanto em São Paulo o índice chegaria a absurdos 15% dos paulistas. O psicólogo paulista, que já atuou na área de redução de danos e implantação de uma rede de atendimento não-manicomial em Santos e Santo André, começou por esclarecer a postura dos trabalhadores da área de saúde mental: “Não somos da área de segurança e não nos cabe erradicar o crack. De modo geral, os hospitais psiquiátricos muito pouco fazem em benefício dos usuários. Os CAPS oferecem atendimento muito mais próximo e integral a estas pessoas”.
E mais ainda: “O problema do crack existe e é preocupante, mas não tem esse peso todo – é muito menor do que o álcool, por exemplo. Isso para não falar de outras drogas de amplo uso, como os ansiolíticos e outros prescritos em enorme quantidade pela classe médica”. Para Décio Castro Alves, a questão da droga também tem fundo social. “Há pouco investimento nas variáveis sociais do problema. E não podemos esquecer que usuários de drogas também têm seus direitos. Muitas vezes, o que é feito é uma interdição de direitos travestida de tratamento de saúde”, afirmou, sendo aplaudido pela grande maioria dos presentes.
Ele também chamou a atenção para o papel fundamental e arriscado desempenhado pelos redutores de danos; “São fundamentais nesse processo e muitas vezes se expõem tanto aos traficantes quanto à polícia”, lembrou. “Que fique claro: se não prejudicar a terceiros, usar drogas não é crime”, complementou.
Rio Grande ficou para trás
Mas o consultor do Ministério da Saúde tratou de lembrar que o Rio Grande do Sul, historicamente, é uma referência nacional no referente ao SUS, especialmente nos anos 90. E apontou que, nos últimos anos, o RS – com cerca de 6% - é o estado brasileiro que menos dedica recursos do orçamento público para a saúde. “Sem dinheiro não há mágica. E a simples repressão não pode substituir isso”.
A voz da platéia
Na rodada de comentários dos participantes da platéia, o estudante de psicologia e redutor de danos Belchior afirmou: “O crack hoje virou um fenômeno de mídia. Quanto à esta mesa, é elogiável a sua diversidade, mas faltou aqui uma figura básica neste debate, que é o usuário de droga”.
Um portador de sofrimento mental, que se classificou como esquizofrênico, do alto de sua experiência condenou duramente a internação manicomial e reforçou a necessidade de investir mais em outras formas de tratamento: “Hospício é uma fábrica de loucura”.
Sociedade de consumo
A conselheira-presidente do CRPRS afirmou que o fenômeno da drogadição não pode ser pensado isoladamente do contexto da nossa sociedade de consumo, individualista, que termina por gerar estas demandas. “Temos que avançar para os cuidados do usuário em liberdade – um preso não faz história. Com autonomia, podemos estabelecer um diálogo com esta pessoa”, declarou Loiva.