A Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP), o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e a Federação Nacional dos Psicólogos (Fenapsi) têm recebido um grande número de pedidos de informação e de manifestações de preocupação sobre a iminência da abertura de cursos de graduação em Psicologia na modalidade de ensino a distância (EaD). Entendemos que a proximidade do período em que as instituições de ensino (IES) divulgam seus cursos para o ano seguinte contribui muito para isso, e que várias IES, particularmente entre as que têm o lucro financeiro como objetivo principal, podem se utilizar dessas notícias inverídicas como forma de pressionar os órgãos reguladores ou de angariar o interesse dos incautos.
Nosso objetivo, com esta nota, é não só reafirmarmos nosso posicionamento totalmente contrário à graduação em Psicologia na modalidade EaD, mas divulgar informações importantes sobre a situação atual.
Não existem, no país, cursos de graduação em Psicologia autorizados na modalidade a distância. O Relatório Síntese de Área da Psicologia sobre o ENADE 2018, publicação oficial do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP), que acaba de ser divulgado, destaca que o Conselho Nacional de Saúde opinou contra a oferta de cursos na Modalidade EaD na Área de Psicologia e não são, então, ofertados cursos nesta modalidade, e a totalidade dos cursos oferece Educação Presencial. Confira Relatório síntese de área: Psicologia.
Posicionamento do CNS
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) e sua Comissão Intersetorial de Recursos Humanos e Relações do Trabalho (CIRHRT) têm repetidamente se posicionado contrários à oferta de cursos da área da saúde, entre eles a Psicologia, na modalidade EaD. Reafirmam essa posição a Resolução CNS nº. 515, de 7 de outubro de 2016, a Resolução CNS nº. 069, de 13 de dezembro de 2017 e os pareceres do CNS para atos regulatórios de autorização e reconhecimento para cursos de graduação em Enfermagem, Odontologia, Medicina e Psicologia, além de Notas Públicas amplamente divulgadas.
Legislação sobre cursos presenciais e a distância
É necessário ainda explicitar algumas questões referentes à legislação sobre cursos presenciais e a distância. A Portaria nº. 1134 de 2016, que trata da oferta de disciplinas na modalidade EaD em cursos presenciais, estabelece:
Art. 1º As instituições de ensino superior que possuam pelo menos um curso de graduação reconhecido poderão introduzir, na organização pedagógica e curricular de seus cursos de graduação presenciais regularmente autorizados, a oferta de disciplinas na modalidade a distância.
1º As disciplinas referidas no caput poderão ser ofertadas, integral ou parcialmente, desde que esta oferta não ultrapasse 20% (vinte por cento) da carga horária total do curso.
Posteriormente, a Portaria nº. 1.428 de 2018 ampliou esse limite para até 40%, com a ressalva de que essa ampliação não se aplica aos cursos de graduação presenciais da área de saúde e das engenharias (Art. 6º.).
Portanto, nos cursos presenciais da área da saúde, não é permitida a oferta de disciplinas a distância que somem mais do que 20% da carga horária total do curso.
Para os cursos em EaD, o Decreto no. 9.057 de 2017 estabelece que há atividades que devem ser ofertadas presencialmente, tais como avaliações, estágios, práticas profissionais e de laboratório e defesa de trabalhos, quando previstas. E a Portaria Normativa nº 742, de 2018, estabelece:
Art. 100 § 3º A oferta de atividades presenciais em cursos de EaD deve observar o limite máximo de 30% (trinta por cento) da carga horária total do curso, ressalvadas a carga horária referente ao estágio obrigatório e as especificidades previstas nas respectivas Diretrizes Curriculares Nacionais do curso.
Portanto, ao contrário do que apregoa a publicidade de algumas instituições de ensino, não existem cursos 100% EaD, uma vez que há atividades que, obrigatoriamente, têm que ser feitas presencialmente. E não existe, na legislação, modalidades como “cursos híbridos”, “semi-presenciais” ou “flex”.
Existem cursos presenciais, que podem, no caso da área da saúde e engenharias, ter até 20% de sua carga horária em EaD, e cursos a distância, que devem obrigatoriamente ter atividades presenciais, tais como práticas, estágios e avaliações.
No caso da Psicologia, existem apenas cursos presenciais.
Posicionamento conjunto da ABEP, CPF e Fenapsi
Mais de 85% do ensino superior brasileiro hoje é privado, e essa condição tem estabelecido uma lógica hegemônica de expansão baseada no lucro, em que a educação se transformou em um negócio e não em um direito social, a despeito do empenho e seriedade das coordenações de curso e corpo docente. O objetivo do lucro cada vez maior tem determinado um menor aporte de recursos que atinge as condições do ensino, precariza o trabalho docente e traz graves riscos à população.
Nos cursos em EaD isso se agrava seriamente, com uma expansão descontrolada de vagas, que chega a um aumento de mais de 5.000% em dois anos, em algumas áreas. A proporção de professores, em média, cai para 7 por 1.000 alunos, com a contratação de muitos tutores, com salários e direitos trabalhistas precários.
Muitas vezes essa expansão descontrolada é divulgada, de forma distorcida, como democratização do ensino ou inclusão, quando na verdade atende a metas financeiras dos grandes conglomerados, desconsiderando a educação como estratégia de desenvolvimento e de promoção de direitos. E o mais grave é que essa prática perversa atinge tanto os que buscam uma formação profissional quanto a toda a população, que certamente ficará exposta a profissionais com sérias deficiências em sua formação.
Por que não podemos prescindir da formação presencial
A ABEP, o CFP e a Fenapsi são entidades defensoras da formação de qualidade ética e técnica, capaz de construir uma identidade profissional marcada pelo respeito às diferenças, pela compreensão das muitas vidas possíveis, pela empatia com o sofrimento e os dilemas da vida vivida, pela capacidade de compreender e dialogar com as muitas formas de pensar e ser, contidas em nossa cultura e diversidade nacional. O diálogo, o confronto de ideias, o debate respeitoso fundamentado em nossa pluralidade teórico-metodológica e nas diversas interpretações que fomentam, a descentração necessária à reflexão e compreensão na diferença, o desenvolvimento de atitudes e afetos que acolhem devem ser a marca do processo de formação em Psicologia.
Esse conjunto de requisitos que formam a identidade profissional não se adquire por meio dos recursos a distância. Ele exige convivência, contato com as diferenças culturais, teórico-metodológicas, experenciais, entre docentes, estudantes e a comunidade. Exige vivências acadêmicas ricas e múltiplas, em que o espaço da sala de aula complementa-se com os demais espaços universitários, como laboratórios, salas de recursos e de orientação, com participação em grupos de pesquisa e estudo, frequência a eventos de natureza acadêmica, conhecimento da estrutura institucional e representação estudantil, conhecimento e contato com instâncias representativas da categoria, entre outros. E em que os espaços acadêmicos complementam-se com espaços de atuação profissional do psicólogo na comunidade, viabilizando a integração teórico-prática e as experiências reais de atuação durante todo o processo de formação.
Sendo assim, a recusa da oferta de cursos de graduação em Psicologia não se constitui em resistência ao uso das tecnologias nos processos ensino-aprendizagem; essas já fazem parte do cotidiano das instituições de ensino superior e podem coadjuvar os processos de formação. A recusa fundamenta-se nos requisitos essenciais à constituição de uma identidade profissional comprometida, competente e ética.
Ao defender a formação presencial, defendemos as/os profissionais que se dedicam ao ensino de Psicologia, que devem ser tratados como docentes e não relegados a categorias secundárias, com condições adequadas para o desenvolvimento de seu trabalho, bem como as coordenações de curso, que se empenham para garantir um ensino de qualidade e atento às Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Psicologia. Defendemos, ao mesmo tempo, as pessoas, grupos, instituições e comunidades, que nos diferentes espaços onde se insere a/o profissional de Psicologia, têm direito a um trabalho marcado pela competência técnica e pelo respeito.
Fonte: Conselho Federal de Psicologia