A retomada dos debates da campanha “O racismo tem dessas coisas”, ocorrida na noite da quinta-feira (30/08) no auditório do CRPRS em Porto Alegre, mostrou que o tema deverá ganhar dimensão até o final do ano, quando mais três debates serão realizados. Quase três dezenas de pessoas encararam a noite fria e chuvosa para debater preconceito racial e formação de psicólogas/os.
Utilizando a técnica do testemunho como estratégia de visibilização do racismo, o encontro recebeu as psicólogas Liziane Guedes da Silva e Rossana da Rosa Carmo para narrarem suas experiências na graduação e na pós-graduação. As duas psicólogas são negras e relataram o preconceito cotidiano de que foram vítimas, que envolveu solidão, falta de solidariedade e desconfiança por parte de alguns professores e de colegas.
Liziane Guedes da Silva, por exemplo, mencionou psicólogas/os que teorizaram sobre a presença negra na Psicologia e que nunca foram citados, ou estudados, na sua graduação – todas/os pesquisadoras/es negras/os. “Penso que se trata de uma prova concreta do epistemicídio a que se refere Boaventura de Souza Santos, ou seja, um apagamento paulatino dos saberes que desafiem a hegemonia eurocêntrica. Negras/os não podem produzir conhecimento, só reproduzir”, disse a mestranda em Psicologia Social da UFRGS.
Ela citou entre essas/es teóricas/os “invisíveis” para o ponto de vista social branco a cientista social Virgínia Bicudo (1915-2003), primeira psicanalista brasileira sem graduação em medicina, em 1945, o psiquiatra Juliano Moreira (1872/1933), pioneiro em incorporar a teoria psicanalítica ao ensino da medicina e no combate às teorias do racismo científico, e a médica e psicanalista Neusa Santos Souza (1949/2008), autora do clássico “Tornar-se negro” (1983).
Liziane criticou a carência de disciplinas que problematizem o racismo nos cursos de graduação, disse que a presença de negras/os na Psicologia começou a mudar a partir da política de cotas e relatou as experiências de ser uma psicóloga negra num mercado majoritariamente branco. “Na minha trajetória profissional, já atendi clientes que pediram uma terapeuta branca e de cabelo liso, além de alta”, brincou a psicóloga.
Rossana da Rosa Carmo relatou as mesmas violências no seu cotidiano profissional, especialmente a sensação de ser “única” nos diferentes espaços de formação pelos quais passou, com ênfase na psicanálise. “Já aprendi muito com o susto das pessoas ao se depararem com uma terapeuta negra, muitas vezes fiquei com a impressão de que esperavam que eu não fosse a psicóloga que os iria atender”, disse.
Também problematizou a política de cotas dizendo que o racismo estrutural da sociedade brasileira prevê outros atravessamentos para manter a hegemonia eurocêntrica e branca. Segundo Rossana, o acesso de negras/os à universidade deveria vir acompanhado de acesso igualmente a bolsas de estudo, a programas de estágio e a projetos de pesquisa. “O acesso a essas outras possibilidades de aprendizagem, comuns a jovens brancas/os, são muito mais difíceis para estudantes negras/os”, constatou.
Antes do ciclo de debates, a colaboradora Gláucia Fontoura apresentou a trajetória do Núcleo de Relações Raciais (NRR) do CRPRS desde 2012 – ano de sua criação. O encontro foi mediado pela conselheira Cristina Maranzana. O ciclo “O racismo tem dessas coisas” visa promover a reflexão sobre estratégias de superação do racismo em diferentes campos de atuação da Psicologia, incluindo locais de trabalho, organizações, políticas públicas, formação, socioeducação, entre outros.
Os próximos encontros, abertos ao público em geral, abordarão racismo e juventude (27/09), racismo e psicoterapia (25/10) e racismo e políticas públicas (29/11). Os debates são realizados no auditório do CRPRS (avenida Protásio Alves, 2854/4º andar), sempre das 18h às 21h.