O que os trabalhadores brasileiros podem esperar das reformas em curso nas legislações previdenciária e trabalhista em relação ao seu bem-estar? E a saúde, como pode ser afetada pelas mudanças profundas que estão em curso na sociedade brasileira?
Esse foi o tema do III Seminário Meu Trabalho Está Me Enlouquecendo, promovido pelo CRPRS na sexta-feira (8/12), em Caxias do Sul, que teve a presença de diversos especialistas em saúde ocupacional. O evento ocorreu no auditório da Faculdade da Serra Gaúcha (FSG) e reuniu dezenas de interessados.
E, a julgar pelas intervenções dos participantes, o futuro não é nada promissor. A conselheira Fernanda Fioravanza, que coordenou as atividades, lembrou que o momento atual é de “tensionamento” em relação a avanços de direitos garantidos na Constituição de 1988 e que estão sendo paulatinamente atacados pelas reformas.
Signatário de vários acordos internacionais que garantem a implantação do “trabalho decente”, Fioravanzo advertiu que o Brasil precisa garantir liberdade, equidade, segurança e qualidade nas relações entre patrões e empregados. “As reformas que estão sendo impostas são tão severas que nos obrigam a reagir de alguma forma, seja nas ruas, seja neste espaço debatendo o que fazer”, disse.
A mesa de abertura teve participação do psicólogo Edson Pedro Berti, representante da 5ª coordenadoria regional de saúde, Claudecir Monsani, do Sindicato dos Metalúrgicos de Caxias do Sul, Niciéli Sguissardi, do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) Serra, Fernanda Borkhardt, do Sindicato dos Servidores Municipais de Caxias do Sul, Ana Cláudia Zampieri, da FSG, e Fernanda Fioravanza, conselheira do CRPRS. Todas as entidades foram parceiras do CRPRS na organização do evento.
Debates
O cientista político e professor da Universidade de Caxias do Sul (UCS), João Inácio Pires Lucas, apontou o hiperconsumismo como responsável pelas mudanças no mundo do trabalho. O pesquisador reforçou a principal contradição da atual “sociedade de risco”: a descartabilidade humana no que era sua essência, de se envolver diretamente na sua subsistência. “A estratégia global hoje não é mais vender poucos produtos para muitas pessoas, mas vender muitos produtos para poucos. Por isso estamos voltando à uma fase de concentração extrema de riqueza”, definiu.
Lucas também lembrou que o processo de desregulamentação, ou “uberização”, está em plena execução dentro de economia global. E citou o caso de escolas mexicanas que já adotam o “professor uberizado” em substituição ao funcionário regular, de carreira – iniciativa que a Universidade Estácio tentou adotar recentemente, mas foi impedida pela Justiça do Trabalho. “Todos nós temos um papel decisivo nesse processo, pois também somos usuários dos aplicativos e não vivemos mais sem eles. Só que não percebemos que um dia esse sistema pode nos atingir negativamente também”, lembrou.
Para Lucas, a reforma trabalhista que entrou em vigor no dia 11 de novembro aposta justamente nessa precarização, no que chamou de “sombreamento” entre setor formal e informal. “Está havendo um brutal processo de desenvolvimento concentrador. O capitalismo não precisa mais desse monte de gente consumindo. No futuro, vamos ter mão de obra barata na maioria dos lugares, as ‘fábricas de suor’, e nichos de qualidade setorizados em não mais que 500 cidades globais”, explicou.
O cientista político traçou um cenário bastante pessimista: haverá espaço, no futuro próximo, apenas para aquelas 8 mil marcas globais que faturam mais de US$ 1 bilhão no mundo por ano, além de seus 300 milhões de acionistas. “Fora disso será o limbo”, finalizou.
Incerteza
A psicóloga Mary Sandra Carlotto, professora da Unisinos, descreveu o cenário atual de aceleração, alta tecnologia, mercado incerto e competição como responsáveis diretos pela prevalência de doenças ocupacionais. “Com as mudanças recentes na legislação, vivemos um momento de muita incerteza. Parecia que as mudanças nas formas de contratação não atingiriam essa massa crítica pensante tão de perto. Mas não é assim: a água vem subindo”, comparou a pesquisadora.
Para Carlotto, o adoecimento crescente da população trabalhadora tem um fundo político e econômico. “Estamos em um contexto de estresse circular, ou seja, que se retroalimenta constantemente. E que, ainda por cima, ganha reforço social e estímulo, já que é uma espécie de privilégio estar trabalhando nesse momento. É um processo invisível”, explicou a professora.
A psicóloga também mencionou a existência de novas enfermidades relacionadas ao trabalho, como o tecnoestresse, ligado à atividade tecnológica, a adição/dependência ao trabalho e o assédio existencial. Todas as doenças apresentam sintomas bastante comuns: insônia, fadiga, dificuldades de memorização, exaustão emocional. “Vivemos uma fase de transição epidemiológica: saímos do acidente de trabalho, visível, palpável, para os transtornos mentais invisíveis”, disse Carlotto.
Psicologia positiva
Por fim, a professora Cristiane Budde, da Universidade Regional de Blumenau (FURB), fez reflexões sobre a possibilidade de construção da felicidade no ambiente de trabalho – ao contrário das patologias. O tema é foco de seu projeto de doutoramento na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
“A psicologia positiva, que trata dessa potencialidade do mundo do trabalho, não é autoajuda e também não negligencia os problemas e o sofrimento humanos. Nosso foco, entretanto, é a compreensão dessas potencialidades, das qualidades e das virtudes de cada um valorizando fenômenos positivos, como o altruísmo e o otimismo, para o debate da saúde do trabalhador”, afirmou.
Para Budde, a felicidade é um conceito muito complexo que envolve três níveis de percepção no mundo do trabalho: material, processos psicossociais e espiritual. “O aumento na condição financeira não implica, de modo geral, em aumento nos níveis de felicidade. O bem estar psicossocial e físico, o respeito mútuo e o apoio social são elementos tão ou mais importantes que as vantagens materiais”, completou.
As intervenções artísticas de Júnior Alceu Grandi, que completaram o seminário, versaram sobre a presença do dinheiro no mundo do trabalho.