Marginalização social e ética profissional
Cantando, dançando e falando suas letras carregadas da violência de seu cotidiano, mas também repletas de esperança e vontade de superação, o grupo de rap “MC’s para a Paz”, formado por oito jovens apenados do Albergue Pio Buck, de regime semi-aberto, proporcionou uma abertura marcante ao Seminário Preparatório Psicologia e Interfaces com a Justiça, na noite do dia 24, quinta-feira, no auditório do CRP. Após o show, muito aplaudido pelos participantes, o Seminário prosseguiu com as colocações das psicólogas Ivarlete Guimarães de França e Ana Luiza Castro – esta representando a Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP. Sua fala antecedeu a conferência da professora carioca Leila Maria Torraca de Brito sobre “A importância da Psicologia na transformação do modelo de intervenção no espaço da Justiça”.
O grupo de hip-hop foi apresentado pela psicóloga Fernanda Bassani, que faz um trabalho junto a presidiários, juntamente com Maristela Mostardeiro. Ela destacou que “incentivar o talento dentro das cadeias também é uma forma de furar o bloqueio imposto pela sociedade aos marginalizados”. Ivarlete, em sua fala, lembrou que o evento – que se estendeu ainda pelos dias 25 e 26 deste mês – é preparatório ao Seminário Nacional Psicologia em Interface com a Justiça e os Direitos Humanos, que acontecerá em novembro em Brasília.
Causas sociais
Sobre as interfaces justiça e psicologia, Ana Luiz Castro frisou que o modelo atual de visão da questão da violência fica muito evidente pelo tratamento dado pela mídia: “A imprensa e o poder público pouco discutem as causas sociais da violência, e sim novas e mais requintadas formas de repressão. O jovem negro, pobre, morador das periferias continua sendo apresentado como o inimigo número um da sociedade”, completou.
Ética e limites de atuação
Já a professora Leila Maria Torraca, do Instituto de Psicologia da UERJ e pós-doutora em Direito, na primeira parte de sua conferência citou a multiplicidade de atuações dos psicólogos junto à Justiça, atualmente, e questionou: “Quais os limites da nossa atuação? Nosso Código de Ética é um só, independente de onde estamos trabalhando”. Inicialmente, recordou, o papel do psicólogo junto aos tribunais era de elaborar diagnósticos. Hoje, outras práticas foram acrescentadas. “Mas a ação da psicologia não pode ser de mera repressão. Temos que manter postura crítica e comprometida com os direitos humanos”.
Demonstrou que é fundamental definir bem as áreas de atuação e os objetivos do trabalho: “Em cada situação temos que ver se estamos ali como peritas, como terapeutas ou como assistentes técnicas”, disse. Mais ainda: “Nossos relatório precisam ser conclusivos na área psicológica – mas nunca na área do Direito, muito menos determinando ou sugerindo esta ou aquela medida penal ou sócio-educativa... Esta parte cabe ao juiz”, deixou claro.
Reinterpretar as demandas
Entre outras colocações que atraíram grande interesse da platéia, Leila Torraca de Brito destacou algumas: “Avaliar a demanda; reinterpretar o que está sendo solicitado. Trabalhar visando assegurar os direitos da população. Observar o campo social que atinge os sujeitos e a sua problemática. Romper com a lógica que privilegia a busca de patologias individuais – que terminam por aprisionar ainda mais o sujeito. Diferenciar o campo jurídico do campo psicológico: trabalho integrado não significa uma fusão, como uma espécie de ‘juiz-psicólogo’. Esta indiferenciação não ajuda em nada a população”.
José Antônio Silva
Criança e Adolescente
A manhã de sexta-feira, 25/09, durante o Seminário Estadual Psicologia e Interfaces com a Justiça, foi dedicada ao debate sobre Criança e Adolescente. O promotor de Justiça de Novo Hamburgo, Manoel Luiz Prates Guimarães, em seu discurso, salientou as diferenças entre as categorias: “Enquanto o Direito tem uma visão objetivista, com uma tendência mais universal, a Psicologia visa à subjetividade, valorizando as particularidades do sujeito”. Márcia Menezes Ribeiro, psicóloga do Juizado da Infância e Juventude de Santo Ângelo, em sua fala ressaltou que devem ser consideradas as singularidades de cada caso, dando como exemplo um episódio no qual o pai bateu no filho que cometeu um furto e, por causa disso, sofreu um processo na Justiça, sendo destituído seu poder familiar. “O homem sentiu-se desautorizado, pois puniu o filho que havia furtado”, completa.
Leila Brito, psicóloga com pós-doutorado em Direito, falou sobre os psicólogos que atuam nas Varas de Família. Ela enfatizou a mudança do conceito de família: “Antigamente, o casamento era para sempre, hoje em dia, são altas as taxas de divórcios. Não existia diferenciação da figura do pai para o marido da mãe e, atualmente, existem crianças que têm pai biológico, padrasto e até pai de criação”. Leila defende que as disposições jurídicas devem considerar a reatualização da família nuclear: “Não é necessário fazer a criança decidir se quer ficar com pai ou mãe”. E questiona: “Ter duas casas desestabiliza a criança?”
Depoimento sem dano
Durante os debates da manhã de sexta-feira também foi colocado em pauta o Depoimento Sem Dano. Segundo o promotor Manoel Guimarães, “esse método pode ser um tiro no pé. Ele é uma desvalorização da avaliação psicológica”. Enquanto da plateia vinha um apelo para que a entrevista seja feita por um psicólogo, Márcia Ribeiro defendeu: “O depoimento faz parte do rito judicial. Se for feito por alguém sem essa qualificação, pode ser impugnado e fazer-se necessária a repetição, causando assim danos às crianças e adolescentes. Essa técnica se insere na proposta de proteção desses jovens”. Por fim, os participantes da mesa deixaram a proposta de uma parceria entre psicólogos e agentes do Direito.
Saúde Mental e Sistema Prisional
Na mesa de debates do período da tarde estiveram presentes Cynthia Ciarallo – Conselheira do CFP, professora e pesquisadora do curso de Psicologia do Centro Universitário de Brasília, com enfoque nos sistemas de justiça e segurança pública; Adriana Mello - Vara de Execuções das Penas e Medidas Alternativas, especialista em Psicologia Jurídica e Clínica; Fabrício Júnior Rocha Ribeiro - Professor do Centro Universitário Newton Paiva e Psicólogo do PAIPJ - Belo Horizonte/MG; e o dr. Aramis Nassif – Desembargador, presidente da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado.
Em um discurso enfático, Cynthia colocou os paradoxos do tratamento do usuário de saúde mental, principalmente quando cometem alguma infração. Ela ressalta que é necessário ter o mesmo cuidado entre esses indivíduos e os demais: “A população usuária de saúde mental não é diferente de mim, mesmo que no sistema prisional”. Adriana Mello apresentou ao público o projeto Qorpo Santo, que possibilita que pacientes do Manicômio Judiciário tenham acesso ao SUS. O psicólogo mineiro Fabrício Ribeiro contou a história das instituições psiquiátricas no Brasil e também criticou o tratamento dado aos usuários, atribuindo essa realidade à exploração da imagem do louco: “Desde pequenos ouvimos que o ‘homem do saco’ é um louco que pega criancinhas. E nas novelas, os autores têm a tendência de patologizar o crime – o sujeito é criminoso porque é doente”. Aramis Nassif, representante do Direito no debate, revelou o desconforto de sua categoria em relação a essa questão: “Nós sabemos que estamos colocando alguém no sistema mais pela necessidade de isolar o risco que ele representa para a sociedade do que efetivamente acreditando que lá ele vá se recuperar”. O desembargador completou seu discurso, lamentando que “o sistema prisional é um tropeço da civilização”.
Bruna Ostermann
Relatórios dos grupos de trabalho serão enviados ao CFP no dia 30
Culminando uma semana de muitos eventos realizados no âmbito do CRPRS, no sábado passado, 26/09, mais de 20 psicólogas e psicólogas estiveram reunidos na sede do Conselho debatendo e sintetizando as principais conclusões do “Seminário Psicologia e Interfaces com a Justiça”, realizado nos dias 24 e 25. O trabalho terminou sendo dividido por dois núcleos – um sistematizando o debate sobre ”Saúde Mental” e “Sistema Prisional”; o outro organizando as conclusões sobre os temas “Criança e Adolescente” e “Vara de Família”.
Cada um dos eixos foi avaliado sob três esferas bem definidas: Direitos Humanos (identificar violações, ações que visam efetivamente garantir os DH); Leitura Crítica do Modelo Assistencial/Rede de Atendimento (rede existente/rede que deveria ser oferecida); e Desafios da Psicologia neste Campo de Intervenção (pontos que podem sustentar práticas implicadas com compromisso social).
Os relatórios finais estão sendo concluído e estarão prontos até a próxima quarta-feira, 30/09, quando serão enviados ao Conselho Federal de Psicologia, como material de subsídios para os debates da Conferência Nacional Psicologia em Interface com a Justiça e os Direitos Humanos, que será realizado em Brasília no mês de novembro.