Na tarde mais fria do ano, com temperatura inferior a 10 graus na sexta-feira (15) em Santa Maria, cerca de 100 estudantes, psicólogas/os, agentes e técnicos penitenciários, além de profissionais de outras áreas, como filosofia e direito, se reuniram no auditório do Centro de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) para debater o drama penitenciário brasileiro no seminário “Sistema prisional: entre grades e possibilidades”.
Promovido pela Comissão Gestora da Subsede Centro-Oeste e pelo Núcleo do Sistema Prisional, o seminário reuniu especialistas no tema para um debate que apontasse soluções para maus tratos, superlotação, encarceramento sem condenação, penitenciárias femininas e recursos humanos no sistema carcerário brasileiro, tido pelos pesquisadores como um dos mais desumanos do mundo.
Com o título de “Por uma psicologia desencarceradora de mulheres”, a psicóloga Sandra Correia abriu o seminário mostrando que há uma relação direta entre gênero, pobreza e juventude nas prisões femininas do país. Para ela, há uma verdadeira epidemia de encarceramento que visa a criminalizar a pobreza como forma simplista de resolver os problemas sociais. Seis em cada dez mulheres, segundo dados apresentados pela psicóloga, estão presas por delitos relacionados ao tráfico de drogas.
“O crescimento no índice de prisão de mulheres tem relação com o protagonismo feminino na geração de renda familiar no país, especialmente nas populações mais pobres. A droga se insere nesse contexto, mas é reducionista enquadrar determinadas atividades na categoria de tráfico. Essas mulheres são vítimas de uma visão simplista de segurança e de criminologia”, disse Sandra, especialista em segurança pública e cidadania pela UFRGS e psicóloga da Unidade Materno Infantil do Presídio Feminino Madre Pelettier, em Porto Alegre.
Ela lembrou que o Brasil tem compromisso formal com o cumprimento das Regras de Bangkok, aprovadas pela Assembleia Geral da ONU em 2010, mas que até hoje esse pacto não se reverteu em políticas públicas pelo desencarceramento de mulheres. As Regras de Bangkok levam em consideração as demandas e necessidades específicas das mulheres em ambientes prisionais, especialmente em relação à maternidade.
No período de 2000 a 2014, o índice de prisão de mulheres avançou 567% no país contra um aumento de 220% nas prisões masculinas. Outro dado dramático: 45% das mulheres presas no Brasil não têm condenação. Os dados apresentados pela psicóloga são dramáticos: metade das mulheres presas no Brasil tem entre 18 e 29 anos, 65% estão encarceradas por delitos relacionados ao tráfico e metade são negras – em algumas regiões do país, esse índice pode chegar a 98%.
“É o estereótipo da pessoa perigosa, que vai parar numa cadeia como parte da solução para a criminalidade comum dos nossos centros urbanos. Trata-se da forma mais usual de resolver conflitos sociais”, afirmou. “A pobreza não produz criminalidade, isso é uma visão moralista. A pobreza é o próprio crime, na medida em que torna visível uma determinada classe para o sistema penal”, explicou.
A psicóloga defendeu uma criminologia crítica com olhar feminista, ou seja, que considere as particularidades de gênero e que supere as características “masculinizantes” do sistema penitenciário. “Estamos diante de uma espécie de ortopedia moral, em relação não só às mulheres, mas principalmente contra nós. A punição é patriarcal, o direito penal é masculino. Punir é masculino, é a tradição de aprender pelo relho. Precisamos superar isso”, disse. O debate foi mediado pela estudante de psicologia Alice Carvalho da Silva dos Santos, do Coletivo Juventude Negra Feminina de Santa Maria.
Contra as prisões
O sociólogo Luis Antônio Bogo Chies, professor da Universidade Católica de Pelotas e vinculado ao Programa de Pós-graduação em Política Social, apresentou a pesquisa “As saídas temporárias na execução penal: ambiguidades e possibilidades”, onde se mostra a perversidade do sistema penal com o mecanismo das saídas temporárias de presos, que faz parte das Lei de Execuções Penais (LEP).
Chies apresentou os resultados da pesquisa, realizada em Pelotas em 2003, com apenados do regime semiaberto que ganharam o benefício da saída temporária. A maioria dos entrevistados pela Universidade disse que se sentia preparado para sair, mas revelou também tinha necessidade de conversar sobre o mecanismo. “Todos os presos queriam ter passado por atividades preparatórias, para entender o benefício, que o Estado simplesmente não oferece. Nenhum se mostrou à vontade de ter de regressar depois da saída", afirmou o sociólogo.
Para Chies, os dados da pesquisa mostram que nem o Estado, nem a sociedade entendem profundamente a dimensão do que representa a privação da liberdade para a individualidade humana. “Não temos dimensão do que é perder a liberdade, de como muda a percepção de tempo, de espaço, de vida das pessoas. A saída temporária é um mecanismo de renovação da dor: renova o gosto da liberdade para suprimi-la novamente, quando esse sentimento já se encontrasse, talvez, anestesiado”, disse.
O sociólogo também defendeu o “abolicionismo penal”, ou seja, um sistema que lide com os conflitos criminais a partir de sanções alternativas ao encarceramento, sejam positivas, sejam negativas. “A prisão é um modelo feito apenas para criar dor”, afirmou. Segundo Chies, não há perspectiva alguma de ressocialização ou de reinserção no mercado de trabalho dos detentos de prisões brasileiras. “O bom presídio é uma falácia, um mito”, completou. O debate foi mediado por Suleima Gomes Bedrow, assistente social da Susepe.
A conferência de encerramento ficou a cargo de João Marcos Buch, juiz da Vara de Execuções Penais de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia. Em “Direitos humanos e sistema carcerário”, Buch disse que nem mesmo o Holocausto, que causou a morte de mais de 20 milhões de pessoas na 2a Guerra Mundial, foi suficiente para colocar limites ao poder do Estado sobre seus cidadãos.
“No Brasil, a violação dos direitos humanos ocorre todos os dias. No caso do sistema prisional, o Estado age positivamente para violar esses direitos e nada se faz contra isso. Vê acontecer e continua reproduzindo. Ou seja, trata-se de um sistema em colapso. O país não conseguiu ainda compreender a irracionalidade do direito penal na forma como é apresentado: trata-se de pílulas milagrosas para satisfazer nossos sentimentos paranoicos de vingança. Penas cada vez maiores não resolvem nada”, comparou.
Buch se disse um juiz contrário ao atual sistema penal e penitenciário, embora, como representante do Estado, tenha de “cumprir a lei”. Mas reafirmou que “prisão nenhuma fez bem”. “Uma ideia nova é sempre mal vista, causa dor de cabeça. Mas é preciso explicar para a sociedade que a conta não fecha. O país não vai construir prisão, não há dinheiro para isso. Não é prioridade. É preciso desafogar o sistema. Como? Entendendo a raiz da violência, suas causas econômicas e sociais, trabalhando penas alternativas e mostrando que há muito lugares em que isso efetivamente funciona”, avaliou.
O juiz também explicou como aplica a remissão penal pela leitura, no Presídio Industrial de Joinville, e sobre as demandas que ouve da maioria dos detentos que estão sob a guarda do Estado, num sistema tachado por ele como inútil. “O trabalho é a principal coisa que os detentos pedem, depois do atendimento médico. Eles querem trabalhar. Está na lei, mas o Estado não cumpre e a sociedade não entende. Aliás, é a mesma lei que os colocou na cadeia. Então, isso gera uma tensão permanente”, disse.
O debate foi mediado por Rodrigo Flores dos Santos, advogado da Susepe e integrante do Núcleo do Sistema Prisional da Subsede Centro-Oeste. A intervenção artística ficou a cargo da acadêmica de Psicologia da Universidade Fransciscana (UFN) Francine Pereira.