Na sexta-feira, 03/05 e no sábado, 04/05, o Conselho Regional de Psicologia do RS, por meio da Comissão de Políticas Públicas, em parceria com o Fórum Estadual de Redução de Danos do Rio Grande do Sul, o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), a Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD), Rede Multicêntrica e apoio da Escola de Enfermagem da UFRGS, promoveram o Seminário Estadual “Outras Palavras sobre Álcool e Outras Drogas”, abordando a prática e as alternativas de cuidado para usuários de álcool e outras drogas pela perspectiva da redução de danos e o cuidado em liberdade. O Seminário foi realizado no auditório da Escola de Enfermagem da UFRGS.
A mesa de abertura do evento contou com a participação da conselheira Manuele Montanari Araldi, presidente da Comissão de Políticas Públicas do CRPRS; do sociólogo Belchior Puziol Amaral, representante da Rede Multicêntrica; de Fernando Edson Campos, do Movimento Nacional da População de Rua; da educadora social Veridiana Machado, representante do Fórum Estadual de Redução de Danos do RS (FERD/RS); e do psiquiatra do Hospital de Clinicas de Porto Alegre Fernando Monteiro, representante da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD).
Manuele Montanari Araldi destacou a importância do evento: “Fechamos um ciclo hoje, iniciamos nosso momento de resistência. Vivemos um momento muito difícil, de retrocessos na saúde mental, modificações da política de drogas. Estamos diante de mudanças, mas não a mudança pela qual sempre lutamos” relata. Com emoção, lembrou da organizadora da primeira edição do Seminário Outras Palavras, a psicóloga Loiva De Boni, falecida em 2016. Em sua fala, Manuele apresentou a proposta do evento, destacando que o Seminário teve suas inscrições encerradas em menos de 24 horas e a participação e o trabalho de todos os parceiros.
Para a educadora social Veridiana Machado, representante do Fórum Estadual de Redução de Danos, o evento é importante para que se possa pensar o que pode ser fortalecido na prática da Redução de Danos (RD): “O cuidado de pessoas que fazem o uso de álcool e outras drogas deve ser a partir do seu protagonismo, de uma relação de construção conjunta”.
O representante do movimento da população de rua, Fernando Edson Campos, agradeceu em nome de todas as pessoas do movimento o convite para participar no seminário e destacou os retrocessos nas políticas públicas referentes à população de rua e o trabalho do MNPR: “Cada um tem seu jeito de fazer redução de danos, e a gente tem o nosso. Temos que pensar em como ajudar. O importante é não desistir” relata.
O psiquiatra Fernando Monteiro, representante da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD), apresentou a história da Associação, destacando a importância de apoiar o movimento da redução de danos. Além disso, ele compartilhou o trabalho que desenvolve pelo Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul e os impactos da redução da equipe que atende no plantão psiquiátrico.
O sociólogo Belchior Puziol Amaral, representante da Rede Multicêntrica, comentou sobre o esforço para realizar o Seminário Estadual, resgatando as memórias da Redução de Danos no Brasil, que comemora 30 anos.
Seminários Regionais Outras Palavras Sobre Álcool e Outras Drogas: Onde está a Redução de Danos no Rio Grande do Sul?
Após a mesa de abertura, foi feito um resgate do histórico dos “Seminários Regionais Outras Palavras Sobre Álcool e Outras Drogas: onde está a Redução de Danos no Rio Grande do Sul?”. A mesa foi mediada pela psicóloga Marta Conte, participante engajada do projeto “RD Cadê Você?”.
O sociólogo Belchior Puziol Amaral ressaltou as conquistas da redução de danos, as perdas e os desafios atuais do movimento que, segundo ele, foi um trabalho pioneiro de técnicas e abordagens com pessoas em situação de rua.
A psicóloga Daiane Carbonera apresentou os desdobramentos do Seminário ocorrido na Serra, em Caxias do Sul, destacando a participação da região. A psicóloga Gabriela Haack, coordenadora da Rede de Serviços Álcool e Outras Drogas da Secretaria Municipal de Saúde de Pelotas RS, comentou sobre o seminário da Região Sul, ocorrido em Pelotas. Gabriela apresentou a organização do evento, a participação e as experiências dessa ação, destacando a troca de aprendizagem com os participantes.
Na região Centro-Oeste, o Seminário realizado em Santa Maria, destacou as estratégias de redução de danos citadas no evento e o trabalho de campo desenvolvido a partir desses desdobramentos, conforme relato da enfermeira Michele Eichelberger.
O debate com o público ficou em torno de duas questões principais: a vivência de prazer e sofrimento na redução de danos e a situação das mulheres gestantes e usuárias de drogas que tiveram suas crianças retiradas ao nascer pelo Sistema Público de Saúde.
Grupos de Trabalho sobre a Redução de Danos
Na parte da tarde, as/os participantes se dividiram em quatro Grupos de Trabalho temáticos: 1) Estratégias de visibilidade de Redução de Danos; 2) Diversidade e Interseccionalidade; 3) Os limites das práticas de Redução de Danos; 4) Controle Social e Redução de Danos.
Redução de Danos e o Trabalho em Ato
A mesa “Redução de Danos e o Trabalho em Ato” iniciou com a participação do representante do Movimento Nacional da População de Rua, Fernando Edson Campos, mostrando a realidade de vida da população de rua. “Difícil quando se fala em Redução de Danos e não temos a possibilidade de escolher o que se quer. Não respeitam nossa vontade e muitas portas se fecham para a gente”.
Logo após, o Seminário contou com a participação do médico Emerson Elias Merhy, doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), referência internacional por desenvolver estudos sobre as políticas públicas dirigidas para coletivos de grande vulnerabilidade social, como a população de rua. Merhy citou a crise de recorte humanitário que vivemos atualmente. “Vive-se uma banalização explícita da vida dos outros. O elemento que nos incomoda é assumido e há uma explícita vontade de se exterminar determinada população”. Isso coloca a Redução de Danos em outro campo.
Citou como exemplo as pessoas que são retiradas a força de territórios inutilizados, demonstrando a "inutilidade das pessoas que tentaram ocupar e dar vida a determinado local que, repentinamente, ganha um determinado valor". Essa valoração é, para Merhy, fruto da relação social em que valores são instituídos imaginariamente pela sociedade.
Para o médico, vivemos atualmente uma fase em que a produção de valor não se dá somente sobre coisas materiais. Exemplo disso é o Airbnb, serviço online para as pessoas anunciarem e reservarem acomodações e meios de hospedagem, que “transformou o nosso quarto, nossa cama, em valor capital, nossa vida privada vira empreendedorismo, mercadoria”. Diante dessa nova realidade, o que tem valor para a sociedade são as vidas capitais. “Qual o valor das vidas que não são capitais?”, questiona Mehry que aponta a Redução de Danos como um dos pontos fundamentais na luta pelas novas formas de existir anticapitalista. “A Redução de Danos é a experimentação de modos possíveis de viver. Anda de mãos dadas com a diversidade, a produção e a defesa da vida e está contra uma vida capital”.
Cadê Você? Ações Atuais e Desafios em Redução de Danos
No sábado, 04/05, a mesa “Cadê Você? Ações Atuais e Desafios em Redução de Danos” contou com a apresentação de experiências e promoveu uma reflexão sobre conceito e futuro da redução de danos.
Professor da UFRGS, o psicólogo Tadeu de Paula Souza iniciou a mesa ressaltando a dimensão clínico-politica da Redução de Danos. “Redução de Danos (RD) é resistência e a força da RD vem do território, dos próprios usuários. “Quando surge, coloca em cena uma perspectiva diferente diante do desejo de querer continuar usando drogas, mas também de se cuidar. Isso tensiona a política de drogas vigente e evidencia a estratégia de dominação do Estado com a polaridade a favor ou contra as drogas”. A Redução de Danos insere outros discursos, revela multiplicidade, respeito a quem quer usar drogas. “A política de guerra a drogas autoriza o Estado a matar em nome de salvar vidas. Temos vivido essa política de extermínio há mais de 30 anos. A RD encara de frente essa política que tem exterminado principalmente jovens negros pobres. A RD acolhe a vida em sua multiplicidade.”, afirmou. Para Tadeu, relacionar a Redução de Danos ao tema do racismo é um novo movimento da RD que precisa ser feito. “Redução de Danos é defesa da vida e chegou a hora de destacar o racismo e o protagonismo dos negros”.
Felipe Bitencourt, que apresentou sua experiência como agente Redutor de Danos em Santana do Livramento – cidade que por fazer fronteira com Uruguai tem várias especificidades – lembrou que a Redução de Danos chegou como um programa para controlar casos de AIDS por uso de drogas injetáveis. “Logo que surgiu o Conselho Municipal de Saúde via a redução de danos como uma apologia às drogas. Hoje isso já mudou bastante e o município apoia”, lembrou. Felipe atua no Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas (CAPS AD) e ressalta que muitas demandas que chegam ao CAPS vêm por meio judicial, o que descaracteriza a Redução de Danos. Para ele, o momento atual é de fortalecimento, promovendo encontros sobre o tema na fronteira.
Também relatando casos práticos, o psicólogo Daniel Araújo dos Santos, que é trabalhador do CAPS AD III Reviver e do Consultório de Rua de Caxias do Sul, trouxe a importância de se romper com a lógica manicomial ao se pensar no trabalho de Redução de Danos. “Precisamos olhar para cada pessoa e pensar junto com ela na melhor estratégia de cuidado. A riqueza da Redução de Danos é pensar que existem várias estratégias possíveis”.
O psicólogo, Pedro Henrique Sitta, educador popular em saúde e brincante/palhaço falou sobre a importância de se pensar na cultura como espaço de produção de saúde, para ajudar a desconstruir conceitos. “Precisamos pensar no cuidado como espaço dialógico, executar novas práticas a partir das falas, se desprender de técnicas para estabelecer relações”.
Professor associado do Centro de Educação, Departamento de Metodologia do Ensino da UFSM, Guilherme Carlos Corrêa citou seu artigo “Drogas para além do bem e do mal” no livro “Outras palavras sobre o cuidado de pessoas que usam drogas”, publicação do CRPRS em 2010. Para Guilherme, o discurso proibicionista impede a problematização de algumas questões: “Ficamos impedidos de pensar medicamentos, agrotóxicos, aditivos alimentares, por exemplo, como drogas.Temos mais pessoas morrendo pelo uso de medicamentos do que pelo uso de drogas”. Para o professor, a Redução de Danos deve discutir esse conceito de drogas. “Não podemos chamar duas ou três coisas de drogas e as outras de medicamento”.
A psicóloga Gabriela Haack, coordenadora da Rede de Serviços Álcool e Outras Drogas da Secretaria Municipal de Saúde de Pelotas, apresentou como o programa de Redução de Danos está inserido na política de saúde mental do município, sempre vinculado ao território. Destacou a importância da gestão/coordenação ter a visão do que acontece na ponta, saber como o trabalho se dá na prática. Lembrou que há alguns anos o trabalho de RD e o do CAPS AD eram opostos, não dialogavam entre si. “Hoje trabalhamos com essa intersecção do trabalho de RD dentro do CAPS”. Ressaltou os princípios norteadores e desafios do trabalho que realiza em Pelotas e apresentou vídeo produzido pela reportagem do Diário Popular, que acompanhou o trabalho do grupo de Redução de Danos da prefeitura de Pelotas.