O Sistema Conselhos de Psicologia, composto pelo Conselho Federal (CFP) e os 24 Conselhos Regionais (CRPs), destaca os retrocessos inerentes às medidas anunciadas pelo governo federal acerca da proposta de ajuste fiscal (PL 4614/2024), que dificulta o acesso e a permanência de usuárias/os em situação de vulnerabilidade no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e no Programa Bolsa Família (PBF).
As alterações, justificadas como parte de um pacote de contenção de despesas, agravam ainda mais as desigualdades sociais e colocam em risco direitos fundamentais garantidos pela Constituição, especialmente para as pessoas idosas e com deficiência.
O BPC, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), é um benefício para pessoas em situação de vulnerabilidade, com renda familiar inferior a ¼ do salário-mínimo. No entanto, as medidas do governo, que incluem a exigência de atualização e inclusão obrigatória no Cadastro Único, o uso de biometria e reconhecimento facial, e a imposição de prazos rígidos, dificultam ainda mais o acesso de quem já enfrenta barreiras tecnológicas, geográficas e sociais.
Na avaliação do Sistema Conselhos de Psicologia, a focalização do BPC em pessoas consideradas “incapacitadas” é outro aspecto preocupante, que reforça práticas capacitistas e discriminatórias. Além disso, as medidas previstas pelo PL 4614/2024 também implicam em um controle excessivo e fiscalizador sobre as famílias, desconsiderando o papel fundamental do trabalho social realizado pelos profissionais da Assistência Social.
Confira a íntegra do posicionamento:
Posicionamento da psicologia brasileira contra as medidas do governo que dificultam o acesso, a permanência no BPC e reforçam o caráter fiscalizatório do cadastro único
As/Os Psicólogas/os, organizadas/os por meio do Sistema Conselhos de Psicologia, juntamente com outras/os profissionais e atrizes/atores sociais que se somam à luta por direitos, contra as desigualdades sociais e em defesa da democracia, manifestam-se veementemente contra o ‘pente-fino’ apresentado pelo governo federal em 27 de novembro de 2024, relacionado ao Programa Bolsa Família (PBF) e ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). As medidas foram justificadas como parte de um pacote de contenção de despesas vinculado ao ajuste fiscal.
O BPC é um benefício assistencial previsto na Política de Seguridade Social, e assegurado na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) destinado a pessoas com deficiência e pessoas idosas acima de 65 anos, cuja renda familiar per capita seja comprovadamente igual ou inferior a ¼ do salário-mínimo. Entretanto, sob o argumento de “garantir que o BPC chegue a quem mais precisa”, o governo tem implementado medidas de austeridade que não apenas dificultam o acesso ao benefício, mas também comprometem a permanência das/os/ beneficiárias/o.
Entre as medidas que restringem o acesso e a manutenção do BPC, destacam-se no PL 4614/2024:
● Exigência de atualização e inclusão obrigatória no Cadastro Único;
● Imposição de prazos para regularização de inconsistências cadastrais;
● Necessidade de upload de documentos, especialmente para famílias unipessoais;
● Utilização de registro biométrico e reconhecimento facial para solicitações e atualizações;
● Restrição do acompanhamento do BPC exclusivamente a plataformas digitais.
Essas práticas ignoram a realidade socioeconômica das(os) beneficiárias(os), que frequentemente enfrentam barreiras tecnológicas, geográficas e sociais para cumprir tais exigências. A obrigatoriedade de reconhecimento facial e biometria, por exemplo, constitui uma violação de direitos, especialmente para pessoas com deficiência e pessoas idosas em situação de vulnerabilidade, que possuem dificuldades para acessar ferramentas digitais por falta de equipamentos, conectividade e/ou limitações na operacionalização destas ferramentas e que acabam por depender do suporte de terceiros, comprometendo sua autonomia e dignidade e expondo-os a situações de insegurança.
Outro ponto alarmante é a focalização do BPC apenas em pessoas consideradas “incapacitadas”. Essa abordagem reforça práticas capacitistas, discriminatórias e contrárias aos princípios da dignidade humana e da equidade. Desde a pandemia de Covid-19, a ampliação do BPC deveria ser prioridade, considerando o agravamento das desigualdades sociais e a necessidade de fortalecer a proteção social. As deliberações da 13ª Conferência Nacional de Assistência Social “Reconstrução do SUAS: o SUAS que temos e o SUAS que queremos”, realizada em 2023, reiteraram a imprescindibilidade de expandir o acesso ao BPC, e não restringi-lo. Exatamente um ano após o processo conferencial, estamos cada vez mais distantes do SUAS que queremos.
O uso compulsório do Cadastro Único como ferramenta de controle e fiscalização, sobretudo para programas de transferência de renda como o PBF e o BPC, configura-se como um instrumento de vigilância da pobreza. A imposição de atualizações cadastrais rigorosas e o cruzamento de informações para averiguação de renda, endereço e composição familiar não apenas penalizam as famílias mais vulneráveis, mas também desconsideram o trabalho social realizado no âmbito do SUAS. Ao invés de avançarmos na consolidação do SUAS, ampliando o trabalho social com famílias, as medidas propostas pelo Governo Federal impõe às/aos trabalhadoras/es o retrocesso de uma atuação voltada a condição de ‘polícia das famílias’.
A exigência de recadastramento compulsório para famílias unipessoais, por exemplo, tem gerado impactos devastadores, resultando na exclusão de beneficiárias (os) que dependem do PBF e do BPC para sua sobrevivência. A limitação sob o pretexto de combater irregularidades reforça desigualdades e promove a marginalização de grupos em maior situação de desproteção social e relacional.
De acordo com a Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2005), o BPC e o PBF são destinados a públicos prioritários no acompanhamento pelos serviços socioassistenciais. Contudo, as medidas de ajuste fiscal contrariam o princípio fundamental da proteção social, ampliando o controle e a fiscalização, em detrimento da garantia de direitos. Isso reflete uma criminalização da pobreza e o aprofundamento das desigualdades sociais, demonstrando uma ruptura com os objetivos do SUAS.
Mais uma vez, o peso das medidas de austeridade do novo arcabouço fiscal recai sobre as/os mais vulneráveis economicamente, ficando cada vez mais distante da perspectiva de justiça social que se esperava de um governo democrático; o mercado ditando as regras de quem deve viver ou apenas sobreviver no país, se eximindo de ações mais efetivas economicamente como a taxação sobre grandes fortunas.
Paradoxalmente, essa forma de controle da pobreza por austeridade, está fadada a intensificar a extrema pobreza e piorar os índices do Mapa Global da Fome da FAO/ONU, que é a grande bandeira brasileira frente aos organismos mundiais – ‘tirar o Brasil do mapa da fome’.
Além disso, o trabalho social com famílias, essencial para a construção de vínculos de confiança e o fortalecimento da autonomia, está sendo desconsiderado por essas medidas. A imposição de processos exclusivamente administrativos e médicos, desconectados das realidades territoriais, fragiliza o papel dos serviços socioassistenciais e viola os princípios éticos profissionais, incluindo as seguranças de acolhida, renda e convivência, desconsiderando o trabalho social desempenhado por uma equipe multiprofissional nos territórios, submetido, através das novas medidas, simplesmente ao aval médico. São as trabalhadoras/es que ficam com a ’conta’ da retirada do benefício da população, afastando o usuário dos serviços socioassistenciais e quebrando a lógica da integração serviços e benefícios socioassistenciais.
Portanto, as/os psicólogas/os, organizadas/os pelo Sistema Conselhos de Psicologia, juntamente com outras/os profissionais atrizes e atores sociais, comprometidas/os com a defesa dos direitos humanos e da democracia – prerrogativas do Código de Ética da/o Psicóloga/o, reafirma que o SUAS é uma política pública de direito constitucional e que o BPC e o PBF são conquistas históricas inalienáveis. Portanto, repudiamos as medidas apresentadas pelo governo, que comprometem a dignidade das /os usuárias/os e intensificam a exclusão social.
Reiteramos ainda a necessidade de respeitar as deliberações da 13ª Conferência Nacional de Assistência Social, que expressaram o compromisso coletivo pela reconstrução e fortalecimento do SUAS. A psicologia brasileira se posiciona firmemente ao lado das lutas sociais por justiça, igualdade e ampliação de direitos.
Viva a psicologia no SUAS! Viva a democracia! BPC é Direito Constitucional!
Não teremos o SUAS que queremos regredindo!
Assinam esta nota o Conselho Federal de Psicologia junto aos seus Conselhos Regionais de Psicologia (CRP’s), abaixo assinalados:
Conselho Regional de Psicologia – 1ª Região (CRP 01/DF)
Conselho Regional de Psicologia – 2ª Região (CRP 02/PE)
Conselho Regional de Psicologia – 3ª Região (CRP 03/BA)
Conselho Regional de Psicologia – 4ª Região (CRP 04/MG)
Conselho Regional de Psicologia – 5ª Região (CRP 05/RJ)
Conselho Regional de Psicologia – 6ª Região (CRP 06/SP)
Conselho Regional de Psicologia – 7ª Região (CRP 07/RS)
Conselho Regional de Psicologia – 8ª Região (CRP 08/PR)
Conselho Regional de Psicologia – 9ª Região (CRP 09/GO)
Conselho Regional de Psicologia – 10ª Região (CRP 10/PA/AP)
Conselho Regional de Psicologia – 11ª Região (CRP 11/CE)
Conselho Regional de Psicologia – 12ª Região (CRP 12/SC)
Conselho Regional de Psicologia – 13ª Região (CRP 13/PB)
Conselho Regional de Psicologia – 14ª Região (CRP 14/MS)
Conselho Regional de Psicologia – 15ª Região (CRP 15/AL)
Conselho Regional de Psicologia – 16ª Região (CRP 16/ES)
Conselho Regional de Psicologia – 17ª Região (CRP 17/RN)
Conselho Regional de Psicologia – 18ª Região (CRP 18/MT)
Conselho Regional de Psicologia – 19ª Região (CRP 19/SE)
Conselho Regional de Psicologia – 20ª Região (CRP 20/AM/RR)
Conselho Regional de Psicologia – 21ª Região (CRP 21/PI)
Conselho Regional de Psicologia – 22ª Região (CRP 22/MA)
Conselho Regional de Psicologia – 23ª Região (CRP 23/TO)
Conselho Regional de Psicologia – 24ª Região (CRP 24/AC/RO)
Fonte: Conselho Federal de Psicologia