De acordo com o último levantamento do Departamento Nacional Penitenciário (Depen) do Ministério da Justiça, com dados do Sistema Integrado de Informação Penitenciária (Infopen), o Brasil tem um índice de 300 pessoas presas para cada grupo de 100 mil habitantes – mais que o dobro da média mundial, de 144 detentos para cada grupo de 100 mil pessoas. A população carcerária do país cresceu 74% entre 2005 e 2013. Já somos a terceira nação do mundo em número absoluto de presos.
Esses dados, que revelam um modelo fora de controle, foram um dos focos do I Seminário do Núcleo do Sistema Prisional Norte: RePensar a judicialização nas políticas públicas é necessário, realizado nesta sexta-feira (17/11) em Passo Fundo. O encontro, que ocorreu na Câmara de Vereadores do Município, debateu o alarmante crescimento da massa carcerária do país e seus efeitos sobre a sociedade.
Os dados do Infopen foram apresentados pela conselheira Fernanda Fioravanzo, coordenadora do Núcleo do Sistema Prisional do CRPRS. Segundo ela, os indicadores revelam um sistema ineficiente e próximo do colapso.
“Temos mais de 700 mil pessoas encarceradas no país. Se formos considerar apenados com tornozeleiras eletrônicas, esse número sobe para quase 1 milhão. Metade dos presos não têm sentença ou está em prisão temporária. São indicadores muito severos que nos levam a perceber que prendemos mal e sem diretrizes”, disse.
O seminário, que reuniu profissionais das áreas da psicologia, saúde, educação e assistência social, teve apresentação da colaboradora do Núcleo do Sistema Prisional (NSP) da Região Norte, Rejane Lazarotto. Ela destacou que o grupo tem a missão de traçar estratégias de resistência ao que chamou, citando o filósofo Michel Foucault, de “instituição total”.
“Essa maquinaria do sistema prisional, que se constitui como uma instituição total, gera muita violência e muita repressão. Também gera invisibilidade e mortificação dos sujeitos, numa produção constante de medo. E com os profissionais não é diferente. Por isso, nossa função é elaborar linhas de fuga para ajudar as pessoas que estão lá”, disse.
Rejane, que atua profissionalmente no Presídio Regional de Erechim, salientou ainda a importância dos encontros mensais do NSP de Passo Fundo e as pressões que o grupo recebe desde sua criação, há cerca de um ano. Segundo a psicóloga, os profissionais também sofrem os efeitos das “políticas repressivas e autoritárias” do sistema. “Nós adoecemos, sofremos, choramos e temos medo”, salientou.
Painéis
No primeiro painel, pela manhã, as conselheiras Manuele Araldi e Fernanda Fioravanzo apresentaram as peculiaridades de atuação profissional no SUS e no SUAS. Segundo Manuele, é preciso entender que as políticas públicas são um direito voltado para toda a população – e, não apenas, em relação ao SUS, para quem não pode pagar um plano de saúde.
“É primordial saber como funcionam as políticas públicas, onde estão as portas de entrada. Não somos pessoas enviadas por Deus para resolver os problemas alheios. Somos trabalhadores vinculados a um sistema”, disse. Também lembrou que quem cumpre pena no sistema prisional perde apenas dois direitos: à liberdade e ao voto. “Portanto, não perde direito à saúde nem à dignidade”, completou.
Fernanda, por sua vez, explicou aos presentes que a tramitação do projeto de lei 3734/2012, que cria o Sistema Único de Segurança Pública – o projeto foi aprovado em dezembro de 2016 na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados.
O projeto estabelece os princípios e as diretrizes dos órgãos de segurança com previsão de proteção aos direitos humanos, a promoção da cidadania, a resolução pacífica de conflitos e a eficiência na prevenção e repressão das infrações penais, com uso proporcional da força. Segundo a conselheira, o projeto não contempla a unificação das polícias civil e militar – uma antiga reivindicação das entidades que lidam com direitos humanos. “Sem isso, a investigação criminal continua apartada da política de repressão, o que está na base dos problemas que o sistema carcerário enfrenta”, avaliou.
Fernanda também mostrou dados da situação do Rio Grande do Sul, cujo sistema prisional é um dos mais caóticos do país. Pelos dados do Infopen, o Estado tem cerca de 36 mil pessoas encarceradas contra cerca de 11 mil há pouco mais de 20 anos. O crescimento da massa carcerária chegou a 7% ao ano entre 2013 e 2016. “Nesse ritmo, nos próximos 20 anos podemos chegar perto de 100 mil presos”, alertou.
A psicóloga fiscal Letícia Giannechini explanou sobre a legislação da Psicologia como instrumento de trabalho, especialmente o Código de Ética, e respondeu a perguntas sobre as relações entre as demandas da Justiça e os limites da atividade profissional. Entre elas, a produção de documentos que podem embasar sentenças judiciais.
Segundo Letícia, não é possível impedir que um juiz demande pela solução de um caso com base em quesitos particulares em relação a um apenado. Mas os profissionais não devem ceder automaticamente às pressões da Justiça. “Há determinadas questões que a Psicologia não tem como responder, especialmente em relação a um prognóstico de reincidência do apenado”, disse.
A psicóloga fiscal lembrou que os profissionais têm autonomia técnica e profissional diante da Justiça e devem reconhecer os limites técnicos da sua competência. “O psicólogo pode ter muitas coisas a dizer sobre um apenado, mas talvez não aquilo que o juiz queira que ele diga”, comparou.
Tarde
Crítico tenaz do sistema penal, o professor da URI do campus de Santiago Pedro José Pacheco, doutor em Psicologia e Direito, começou apresentando uma série de fotografias de presídios do país e recomendou que os profissionais “sintam o cheiro” das cadeias para entenderem melhor a desigualdade do sistema.
“No Brasil, 41% dos presos atuais não têm sequer investigação sobre os supostos crimes que cometeram. São presos provisórios que mostram mais um indício da violência e da ilegalidade do Estado”, disse. Pacheco lembrou que 64% dos apenados não têm ensino fundamental completo, o que revela mais uma ilegalidade estatal: a lei de execuções penais obriga o Estado a suprir os condenados sob sua guarda a completar os estudos.
Defensor do “abolicionismo penal”, Pacheco também criticou o discurso “utilitarista” do governo gaúcho em relação ao sistema prisional. O atual governo, segundo ele, agregou 7 mil pessoas às penitenciárias estaduais. “O Estado trabalha numa lógica de seleção de pessoas, um conceito que remonta ao positivismo jurídico do século 19: geralmente jovens, não brancos, com escolaridade muito baixa e sem trabalho formal. Mas nem todas as pessoas presas são criminosas e nem todas as pessoas criminosas estão presas”, comparou.
Pacheco lembrou que o Código Penal do país tipifica 1.684 crimes passíveis de punição, embora apenas seis concentrem a massa carcerária brasileira. “Num regime democrático, não posso ser preso pelo que sou, mas pelo que fiz. Não é isso o que ocorre no Brasil. Por que a Polícia só prende certas pessoas e por determinados crimes? O sistema penal tem que ser seletivo, para não chegarmos ao que Machado de Assis narra em O Alienista: podemos ter, em algum momento, mais gente presa do que gente solta”.
Também fez duras críticas à etiologia do crime, que tenta entender esses comportamentos pela via patológica ou por modelos psicológicos baseados em raça ou em condição social. “Não há uma natureza humana voltada ao crime. A ideia do crime está relacionada à cultura e ao tempo histórico. Não é possível isolar o ato em si. Crime não é exceção, é regra”, polemizou.
Além disso, o pesquisador questionou o princípio da ressocialização por meio de punições. Segundo ele, o castigo apenas gera revolta por parte de quem sofre a violência do encarceramento. “Punição não muda comportamento para o bem, esse é um discurso pedagógico falacioso. Não se muda comportamentos isolando pessoas. Muda-se pessoas para melhor com cuidado, esse é o princípio da educação”, afirmou.
Pacheco defendeu práticas alternativas de punição e a restrição do encarceramento a casos “muito graves”, de extrema violência, e por tempo bastante reduzido. Citou a justiça restaurativa e as audiências de custódia como boas experiências alternativas. E, quando o encarceramento é inevitável, tratar quem tem a liberdade restrita com dignidade, com escuta e acolhimento, como forma de amenizar os danos do encarceramento.
“O sistema prisional danifica a saúde mental dos sujeitos permanentemente. E isso é confirmado pela própria Lei de Execuções Penais, que prevê acesso dos apenados à vida social e sexual como forma de compensar a privação da liberdade. Portanto, a própria lei reconhece que a cadeia provoca uma deterioração constante na cabeça do indivíduo. Como recuperar alguém assim? Trabalhei muitos anos em sistema fechado e nunca vi resultados. É preciso repensar essa engrenagem e combater os discursos bélicos, de medo, de pânico moral e fascistas”, completou.
O seminário terminou com a exibição e debate entre os presentes do curta-metragem “O poder entre as grades” (2014), dos diretores Tatiana Sager e Zeca Brito baseado na reportagem “Falange Gaúcha”, do jornalista Renato Dornelles.