Reviver a tragédia de 27 de janeiro de 2013, para muitas famílias e sobreviventes, pode ser duro demais. Por isso, uma rede de afeto está sendo montada para apoiá-los durante o júri, que começa nesta quarta-feira, em Porto Alegre, e pode durar até 15 dias. Para garantir o apoio psicossocial a eles, serão montadas "Tendas do Cuidado", e um coletivo de profissionais foi criado para atuar nos atendimentos. Eles serão divididos em duas frentes: uma vai atuar em Santa Maria e outra em Porto Alegre. Aqui, o ponto de referência será a tenda da vigília, na Praça Saldanha Marinho. No local, um banner branco dará lugar ao atual, que estampa os rostos das 242 vítimas. No espaço, a população poderá deixar mensagens de apoio. No Clube Comercial, na Rua Venâncio Aires, será instalado um telão para quem desejar assistir à transmissão do julgamento. O cronograma de atividades será permanentemente atualizado nas redes sociais da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
Na Capital, o estacionamento da EPTC, a cerca de 100 metros do Foro Central, onde ocorrerá o júri, será o local da tenda para quem não quiser ou não puder acessar o prédio. A tenda irá oferecer apoio, práticas integrativas e complementares, arteterapia, entre outras intervenções. Além disso, o próprio Tribunal de Justiça (TJ) disponibilizou profissionais e salas que vão poder receber familiares e sobreviventes. Médicos da equipe de saúde do TJ estarão à disposição em parceria com a equipe do Acolhe Saúde da prefeitura de Santa Maria. Serão quatro salas no térreo do prédio destinadas aos familiares. No 5º e no 6º andar, outras salas serão específicas para o acolhimento. A retaguarda será feita por uma equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
- Nossa prioridade é respeitar o pedido dos familiares e sobreviventes. O TJ foi muito flexível e incansável, e atendeu todas as demandas deles - explica a psicóloga Károl Veiga Cabral, que está à frente da organização da Tenda do Cuidado em Porto Alegre.
Károl foi coordenadora da Política de Saúde Mental do Estado, trabalhou nos dias seguintes à tragédia na coordenação da Frente de Atenção Psicossocial, que foi uma resposta aos efeitos físicos e emocionais gerados pelo incêndio na boate.
- No caso de Santa Maria, nossa ideia é conversar com a cidade. Ocupar a praça, dar carinho para familiares e sobreviventes. Queremos mostrar que somos capazes de respeitá-los e acolhê-los. Na verdade, todo o Estado tem uma dívida histórica com essas pessoas - salienta a professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e enfermeira, Liane Beatriz Righi, que também trabalha com familiares e sobreviventes desde a tragédia.
Serão equipes multidisciplinares, que envolvem psicólogos, enfermeiros, médicos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, assistentes sociais, nutricionistas e educadores físicos. Para garantir atendimento nos três turnos, uma escala de trabalho foi organizada. São cerca de 200 profissionais envolvidos. Muitos atuaram na tragédia em 2013 e já possuem vínculo com os pacientes envolvidos no incêndio.
As frentes de trabalho contam com estudantes e profissionais vinculados a diferentes instituições, como Universidades (UFSM, UFRGS, ESP, UFN), movimentos sociais (Fórum Gaúcho de Saúde Mental, Coletivo Sou Sus, Coletivo Gerapoa), Secretarias Municipais de Saúde (Porto Alegre, Santa Maria e Canoas), Secretaria do Desenvolvimento Social de Porto Alegre, Secretaria Estadual de Saúde, Conselhos Profissionais (CRPRS, CREFITO), SEDUFSM e profissionais liberais.
Santa Maria Acolhe
· O serviço terá turno estendido, de segunda a sexta, das 17h às 21h
· O atendimento normal, das 8h às 17h, também estará disponível
Nove anos de atendimento às vítimas
O atendimento nos dias de júri é temporário, porém, por trás da mobilização organizada de profissionais da saúde, há anos de serviços prestados à familiares e sobreviventes. Em um primeiro momento, foram centenas de profissionais de todo o Brasil envolvidos nos impactos da tragédia na saúde mental das pessoas que haviam perdido pessoas queridas ou sobreviventes. A necessidade era aumentar a rede de atendimento em Santa Maria.
- À época do incêndio, a rede de saúde mental do município tinha limitações estruturais no atendimento das demandas de rotina. Ficou óbvio desde o primeiro dia que seria necessário criar novas estruturas e estratégias de cuidado psicossocial. Esse movimento aconteceu já na madrugada do dia 28 diante da perplexidade e do sofrimento e foi apresentada para representantes da gestão municipal, estadual e federal de saúde. Diante da necessidade de respostas urgentes e orientadas pelo conhecimento científico, ficou estabelecida uma coordenação inicial que conduziu a estruturação das primeiras estratégias de cuidado psicossocial - relembra o psicanalista, doutor em psicologia social e coordenador do Santa Maria Acolhe, Volnei Dassoler.
Com a convicção de que os efeitos psicológicos se manteriam por muito tempo e outras pessoas procurariam o atendimento, surgiu a necessidade de criar um serviço específico para as demandas associadas ao incêndio. Assim, iniciou o processo de transição para um planejamento a longo prazo, com escolha de uma sede e contratação de profissionais. Nasce aí o Acolhe Saúde. Desde lá, o serviço foi se incorporando como uma nova estratégia de saúde mental dentro da rede de saúde do município.
- De certa maneira, podemos afirmar que o desastre deixou o Acolhe como legado à cidade e à população, que hoje conta com um serviço de acolhimento a um contingente de pessoas que vivem o seu drama pessoal das situações de luto, trauma, crise e suicídio. O incêndio forçou a criação do Acolhe e ele se tornou um serviço de saúde mental imprescindível a um segmento que se via à margem porque seu sofrimento era interpretado como menor ou como "parte da vida" - afirma Dassoler.
Referência para atendimento de vítimas no Brasil
Em 2013, o incêndio foi um acontecimento inesperado sob qualquer ponto de vista. No Hospital Universitário, o foco central foi o atendimento de pessoas que inalaram a fumaça tóxica no dia do incêndio. Com o passar dos dias, a saúde mental dos envolvidos precisou de atenção. Contudo, foi criado o Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes (Ciava), com atendimento multidisciplinar. O objetivo era criá-lo para atender outras demandas envolvendo traumas e acidentes. Nos primeiros dois anos, o atendimento foi exclusivo aos envolvidos na tragédia. Na sequência, o serviço foi ampliado.
- Eu estava de plantão de dia, saí do hospital às 20h do dia 27. Eu cheguei no outro dia e vi uma movimentação diferente, tinha muitos jovens. Fui comunicado do que estava acontecendo. Naquele momento, eram 90 mortos. Esse número foi aumentando ao longo da manhã. Era minha última semana de residência médica. Em um determinado momento, fui conduzido ao CDM, ajudei meus colegas e retornei para o Husm. Naquele dia, não tivemos muitos atendimentos, mas a partir dali recebemos muitas pessoas - recorda o médico psiquiatra e professor adjunto da UFSM, Vitor Calegaro, coordenador do Ambulatório de Psiquiatria do Ciava.
A atuação era feita em paralelo com o Acolhe. No começo, eram cerca de 200 pessoas atendidas por mês. Atualmente, são cerca de 30 pessoas. Nos dias seguintes à tragédia, durante os plantões, o médico lidou com a vida e a morte. Era o contraponto do silêncio da cidade com o barulho dos helicópteros que sobrevoavam a cidade para transferir pacientes. Pessoas andavam sem rumo dentro do hospital. O serviço, que era voltado mais às sequelas físicas, precisou dar conta das feridas emocionais.
- É comum as pessoas traumatizadas perderem o senso de confiança. A confiança nos outros. Sobretudo, naqueles que a gente achava que iam nos proteger, nos cuidar. Essa angústia de anos sem saber o que vai acontecer coloca em cheque esse sentimento de confiança, de pertencimento a uma sociedade organizada. Dentro dessa perspectiva, existem expectativas envolvidas e elas podem ser atendidas ou não. O importante é que vamos dar um próximo passo, independentemente do desfecho - reforça Calegaro.
Reportagem de Jaiana Garcia publicada no Diário de Santa Maria em 29/11/2021.