O CRPRS promoveu, na noite de quinta-feira, 22/07, às 19h30, o terceiro e último dia do “Seminário Relações Raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas/os – Módulo II” para discutir como a categoria pode contribuir, em sua prática, para o enfrentamento do racismo e promoção da igualdade no país.
A atividade contou com a mediação da psicóloga Simone Paulon, representante do Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e das convidadas Lia Vainer Schucman (CRP 12/17917), professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Míriam Cristiane Alves (CRP 07/24471), presidenta do Núcleo de Processos Clínicos e Psicossociais da Subsede Sul do CRPRS, e Thaíse Mendes Farias (CRP 07/28216), coordenadora do Núcleo de Processos Clínicos e Psicossociais da Subsede Sul do CRPRS.
Para a convidada Lia, é importante destacar, inicialmente, que a teoria das relações raciais é fundamental para a formação de toda/o psicóloga/o, desde a graduação. “Não é algo que ela/ele precise saber para se tornar um ativista, mas, sim, para conseguir trabalhar em qualquer campo de atuação que está inserida/o”, introduziu a convidada.
A professora trouxe, durante sua fala, três casos, relatados em uma das suas pesquisas, que mostram que o racismo ainda está inserido na prática da Psicologia. “Atualmente, estou entrevistando psicólogas/os formadas/os para uma pesquisa sobre a atuação da categoria diante de assuntos de raça. Em uma das entrevistas, conversei com uma profissional que trabalha em um hospital de elite, em Florianópolis, e ela me contou que o último paciente negro que atendeu foi um jovem que estava com muita dor no apêndice e, por isso, pedia por morfina, mas, a equipe, achando que o garoto queria somente se drogar, negou o pedido do medicamento. Até o momento da nossa conversa, a psicóloga não tinha se questionado que aquela decisão de seus colegas tinha ocorrido apenas nesse caso, pois, em pacientes brancos, com o mesmo diagnóstico e a mesma solicitação pelo remédio, a morfina sempre foi concedida”, trouxe Lia ao explicar que o estereótipo do homem negro, muitas vezes associado a criminoso, drogado e forte, interferiu na ideia que aquela equipe tinha do sujeito, causando uma segregação de quem teria ou não direito de ser tratado.“
O segundo caso foi entrevistando um psicólogo clínico: ao perguntar se ele incorporava a categoria raça e as questões raciais em suas consultas, o profissional disse que só trabalhava o tema se o próprio paciente o trouxesse. No entanto, ao contar sobre a última paciente negra que atendeu, uma menina com problemas de se sentir inadequada e com autoestima baixa em relação a sua estética, o psicólogo não conseguiu perceber que ela estava trazendo pautas raciais, como a questão do padrão de beleza, por exemplo. Particularmente, acho que esse é o relato mais grave que eu trago. No Brasil, as pessoas falam de raça o dia inteiro por metáforas. A menina estava falando de raça o tempo todo, quem não conseguiu escutar foi o psicólogo”, explicou Lia ao frisar que a/o profissional precisa saber falar de relações raciais e entender quais são as linguagens na ativa desse assunto. “O psicólogo aprendeu que o paciente falaria sobre questões raciais apenas se nomeasse explicitamente a palavra ‘raça’.”
O último caso trazido pela professora reforça como a ausência da consciência de classe e de um saber sobre as desigualdades raciais afetam ainda mais a população negra e indígena, deixando implícito, por toda a sociedade, a falsa ideia de que todas/os possuem as mesmas oportunidades. “Outra psicóloga entrevistada trabalhava em uma prefeitura, no ‘grupo de altas habilidades’, que desenvolve alunos com altas habilidade em, por exemplo, matemática e música, para entrar em competições ou aprimorar seus talentos. No decorrer da conversa que eu tive com essa profissional, perguntei se já tinha chegado um aluno negro desse perfil para que o grupo desenvolvesse e a resposta foi que somente um. Este, em específico, foi afastado, porque, segundo ela, a equipe não sabia lidar com ele, chegava atrasado, morava muito longe e não tinha ninguém para trazer. Ou seja, fica evidente que os profissionais não conseguiram perceber as dificuldades de desigualdade na qual as pessoas negras estão inseridas, tirando possibilidades de produção de talentos.”
A mediadora do evento, Simone Paulon, acredita que a categoria precisa derrubar as “paredes brancas da prática psicológica”, seja ela clínica, hospitalar ou qualquer uma das mais variadas áreas de atuação da categoria. “Diante desses relatos, eu me pergunto que tipo de Psicologia estamos fazendo?”. De acordo com a presidenta da Comissão de Processos Clínicos e Psicossociais do CRPRS, Miriam Alves, os três exemplos que a professora Lia relatou explicitam como o racismo descarta corpos e privilegia outros. “Você, psicóloga/o, já pensou como uma pessoa privilegiada pode contribuir com a luta antirracista?”, perguntou.
Miriam salienta que no documento "Relações Raciais: referências técnicas para atuação de psicólogas/os", publicado em 2017 pelo Conselho Federal de Psicologia, sobre relações raciais estão descritos diversos questionamentos que são importantíssimos para a prática profissional da categoria. “Esses questionamentos são fundamentais para que as/os psicólogas/os se movimentem e contribuam para a desconstrução do racismo e promoção de igualdade. É importante dizer a você, psicóloga/o branca/o: temos que olhar para aquilo que chamamos de mecanismos de defesa do ego, de negação, da culpa e da deslegitimação.”, comentou a presidenta da Comissão ao estabelecer que a categoria precisa se questionar sobre a sua escuta.
“E psicólogo não pode parar apenas no processo de reconhecimento, nós precisamos, ainda, buscar pela reparação: uma negociação com esse reconhecimento, ou seja, o ato de reparar os efeitos causados pelo racismo através da mudança das estruturas. Um alerta: não adianta se colocar como antirracista e, diante de qualquer pessoa negra que traz esse sofrimento, não escutar e silenciar.” Ela defende que a/o psicóloga/o deve fazer um diagnóstico sobre a discriminação institucional e interpessoal nesses espaços que cada um atua, fazer o enfrentamento dos mecanismos de discriminação racial, dialogar com os gestores, coordenadores e profissionais e sensibilizar-se para essa escuta do reconhecimento do racismo.
Microagressões na prática terapêutica e as habilidades multiculturais
Thaíse Mendes Farias, coordenadora do Núcleo de Processos Clínicos e Psicossociais da Subsede Sul do CRPRS, atua, atualmente, na pesquisa Microagressões Raciais na Prática Terapêutica e as Habilidades Multiculturais dos Terapeutas através do Laboratório de Estudos em Psicoterapia e Psicopatologia (LAEPsi). Para ela, esse estudo costuma determinar quem são, de fato, as/os boas/bons psicólogas/os no mercado. “Pois, a partir disso, conseguimos compreender porque algumas/uns psicólogas/os conseguem ouvir minorias e outra/os não. Isso é uma habilidade para poder lidar com as diferenças culturais, que vai para além do saber científico.”
Segundo a pesquisadora, as habilidades multiculturais tiram o foco dos pacientes e passam a se debruçar na atuação dos próprios terapeutas, o que seria uma tendência da atual ciência da Psicologia. Para ela, os estudos das habilidades multiculturais se baseiam em três eixos: humildade cultural, oportunidades culturais e conforto cultural.
“Humildade cultural se refere a como o terapeuta se coloca na relação com o paciente. Como que eu vejo aquela pessoa que estou escutando? Consigo pensar nela como uma produtora de uma narrativa, que conhece a própria história ou que somente eu sou um detentor de saber?”, explicou.
“Oportunidades culturais se referem ao quanto o terapeuta consegue ouvir um paciente cuja cultura é diferente da sua, captar oportunidades e, a partir das experiências desse sujeito, conseguir fazer a sua clínica. E o eixo de conforto cultural é sobre a gente ouvir confortavelmente alguém que está em uma cultura diferente da nossa. Aqui, é interessante perceber que isso está diretamente ligado a uma questão bem importante quando falamos de raça: que é a intolerância religiosa. Por exemplo, é sobre eu, psicóloga/o, conseguir escutar um paciente que é de religião de matriz africana falar sobre as suas práticas religiosas e sobre sacrifício de aves/caprinos e não me horrorizar. Até porque, dentro da cultura branca há, também, liturgias ao redor daquilo que se come, come o piru no natal e porco no ano novo.”
Durante a discussão, ficou evidente que as habilidades multiculturais acabam fazendo com que as/os terapeutas deixem de cometer microagressões. Chamadas de “micros” não porque são pequenas, mas, sim, porque são sutis, implícitas e, na maioria das vezes, inconscientes para aqueles que as perpetuam. “Isso é muito comum dentro da clínica, é muito comum a gente ouvir relatos de negros e indígenas que dizem que as/os suas/seus psicólogas/os os agrediram e não se deram conta”, comentou Thaíse.
São exemplos de microagressões: insultos sutis, como cegueira racial, quando a/o psicóloga/o diz para a/o paciente algo do gênero “Mas eu não te enxergo como uma pessoa negra, eu te enxergo como um ser humano”; invalidações do sofrimento decorrente do racismo, quando a/o paciente relata uma experiência de racismo e a/o terapeuta invalida aquilo dizendo coisas do tipo “Tu tem certeza que isso é racismo?” ou acusa o paciente de hipersensibilidade diante de uma agressão racial “Isso nem é pra tanto, por que que você está tão ofendida/o e magoada/o?”
Organizada pela Comissão de Relações Étnico-Raciais do CRPRS, o seminário teve duração de três dias e certificou os participantes que se inscreveram, via Sympla, para o evento. A presidenta da Comissão, Roberta Gomes, concluiu as atividades frisando a importância da discussão e das falas sensíveis e políticas das mais de sete convidadas/os para o seminário. “Convocamos a nossa categoria a pensar a sua atuação frente as relações étnico-raciais, em qualquer área de atuação dentro da Psicologia.”
Vem aí o 11º CNP
O “Seminário Relações Raciais: referências técnicas para atuação de psicólogas/os - Modulo II” já foi considerado um evento preparatório para as etapas que antecedem o 11º Congresso Nacional da Psicologia (CNP), instância máxima em que são discutidas e deliberadas políticas prioritárias para os próximos anos, ou seja, para as próximas gestões dos Conselhos Regionais e do Federal.
O 11º CNP será realizado pelo Conselho Federal de Psicologia de 2 a 5 de junho de 2022 e terá como tema “O Impacto Psicossocial da Pandemia: Desafios e Compromissos para a Psicologia Brasileira Frente às Desigualdades Sociais”. Para participar é preciso ter sido eleita/o delegada/o nos Congressos Regionais da Psicologia (Coreps), que serão realizados entre 18 de março e 17 de abril de 2022. Os Coreps reúnem as/os representantes que foram eleitas/os nos Pré-Congressos, que acontecem entre 30 de setembro de 2021 a 28 de janeiro de 2022.
Fiquem atentas/os à agenda dos Pré-Congressos que serão promovidos pelo CRPRS e participem!