Um passeio pelas várias culturas e civilizações humanas foi a proposta da filósofa e psicanalista Viviane Mosé na conferência de abertura do Encontro Gaúcho da Psicologia, na quinta-feira (16/08), no Teatro Dante Barone. Viviane, cuja apresentação tinha como título “A exaustão da razão”, descreveu o quadro atual da sociedade: em crise. “Estamos vivendo mais do que uma crise normal porque, a meu ver, tudo está em crise”, sintetizou no início de sua fala. O debate foi mediado pela presidente do CRPRS, Silvana de Oliveira.
Segundo Viviane, a atual crise civilizatória tem a ver com uma mudança na forma de percepção da realidade: o tradicional “pensamento em linha”, de acordo com Viviane, está sendo substituído velozmente pelo “pensamento em simultaneidade”, que troca a materialidade da vida, ou sua objetividade, pela narrativa midiática, nas redes. É como se o ato de viver estivesse sendo substituído pela exposição desse ato. “É mais ou menos o papel que o carro ou casa tinha na vida das pessoas: hoje é essencial ter espaços de narrativa, registrar materialmente as vivências”, disse.
Nesse sentido, alertou para três aspectos decorrentes dessa transformação: estamos nos transformando apenas em metáforas do que somos efetivamente; acabamos ampliando nosso espaço de significação perante o coletivo; e criamos, com isso, uma exigência de desempenho que está nos incapacitando paulatinamente. Não é à toa, destacou a filósofa, que os índices de depressão batem recordes na contemporaneidade. Assim como os suicídios em populações jovens, especialmente. “Estamos matando nossa intangibilidade. Se não posso comigo, posto”, destacou.
Por trás dessa pressão, lembrou a filósofa, estão as constantes promessas por felicidade a que somos submetidos. Pensadores tão díspares quanto Marx e Freud representam promessas modernas de felicidade. O consumo exacerbado, estimulado pelo capitalismo neoliberal, também. E a ciência, com seus avanços médicos, investiu em técnica e jogou uma sombra sobre o humano – hoje incapaz de lidar com uma frustração.
Para Viviane, entretanto, a palavra felicidade só promete, não cumpre. “Essas promessas de felicidade acabaram nos retirando dos nossos corpos, pois passamos a odiar o sofrimento – tanto físico quanto psíquico – quando ele é um dos fundamentos da existência”, afirmou.
Da mesma forma que passamos a odiar o sofrimento físico e psíquico, e a nos medicar cada vez mais contra isso, passamos a odiar também a solidão, completou Viviane. Mas solidão é, ou deveria ser, diferente de abandono. “Solidão é condição de vida. Quando estou sozinho estou comigo, estou exercendo a minha humanidade de conversar comigo mesma. Estamos nos embotando rapidamente, como um retrato da nossa impotência em existir”, constatou.
Segundo Viviane, a sociedade mudou num grau inacreditável. “O que observamos agora é uma crescente terceirização da vida. A culpa, entretanto, não é da internet. Trata-se apenas do processo de destruição das nossas relações humanas”, disse Viviane, que terminou sua conferência dizendo o poema “Poemas presos”, de sua autoria. Que começa assim: “A maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos/
Abscessos, tumores, nódulos, pedras…/São palavras calcificadas, poemas sem vazão./
Mesmo cravos pretos, espinhas, cabelo encravado, prisão de ventre…/Poderiam um dia ter sido poema, mas não…/Pessoas adoecem da razão, de gostar de palavra presa./Palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima”.
A conferência de Viviane Mosé pode ser assistida acessando o Canal do YouTube do CRPRS.
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