Na reta final do julgamento do caso Kiss, equipes multiprofissionais seguem no acolhimento e cuidado dos familiares das vítimas e sobreviventes do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria. Divididos em dois grandes grupos, um em Porto Alegre e outro em Santa Maria, o coletivo de trabalhadores/as que fazem parte da organização do apoio psicossocial vêm se revezando em escalas de trabalho mostrando a potência de uma atuação interinstitucional e multiprofissional.
Para a psicóloga Patricia Ziani Benites, trabalhadora da Escola de Saúde Pública da Secretaria Estadual da Saúde, que está atuando na Tenda do Cuidado – espaço montado na parte externo do Fórum Central, em Porto Alegre, para acolher e ser um “refúgio” durante o julgamento – as ações de saúde mental desenvolvidas para esse momento, tão difícil e emblemático para famílias e sobreviventes, são extremamente importantes e necessárias. “Quando falamos na atenção e no cuidado das pessoas que estão em sofrimento é importante considerar o olhar, o abraço, a escuta, isso é essencial. Ter a tenda aqui com uma equipe multiprofissional, reunindo pessoas de diferentes pontos da Rede, todos atuando com base na Atenção Psicossocial e nos princípios do SUS, é uma experiência, antes de tudo, humana. Saímos da lógica da patologização e entramos com o olhar da atenção, do acolhimento, do respeito. Muito mais do que qualquer palavra, estar junto, nesse momento de dor, é o principal”.
Dentro do Fórum, a psicóloga Carolina Moojen, voluntária da Cruz Vermelha, também ressalta a importância desse trabalho. “O trabalho não só da Psicologia, mas de todas/os profissionais aqui envolvidas/os, tem sido fundamental para as famílias e sobreviventes”, afirmou.
A conselheira do CRPRS, Carla Tomasi, conta que se surpreendeu com a agilidade para organizar toda a logística de apoio às famílias durante o julgamento. “É impressionante como as pessoas conseguiram se organizar num espaço de tempo tão curto, menos de um mês. Muitas pessoas nos procuraram dispostas a contribuir”. Ao se envolver com essa organização, o CRPRS pode dar continuidade ao trabalho iniciado em 2013, na época do incêndio, com a organização de voluntárias/os e frentes de trabalho. “Demonstramos que Psicologia tem muito a contribuir com esse trabalho em situações de emergências e desastres. Por isso, é importante o CRP estar aqui. Além disso, é importante mostrar que sabemos trabalhar com outros profissionais e que entendemos o luto não como uma doença, que precise ter um fim, mas como um processo”. Carla observa que o espaço dentro do Fórum reservado para o acolhimento das famílias virou um ponto de encontro entre familiares e equipes de trabalho, o que mostra que conseguimos cumprir o objetivo de ser um lugar acolhedor”.
E esse acolhimento é percebido, pelas famílias, como um abraço, como revela Flávio Silva, presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTM). “Nos sentimos muito acolhidos aqui em Porto Alegre. Com toda essa solidariedade, nos sentimos em casa. Esta era uma preocupação: como seria estar longe de nossas casas nesse momento? Fomos abraçados e acolhidos em todos os sentidos”. Para Flávio, o julgamento é um marco importante na história dessas famílias. Viemos lutando há quase 9 anos em busca de justiça e realmente acreditamos que a justiça será feita. A partir daí vamos virar essa página, será uma nova fase de nossas vidas, com o sentimento de dever cumprido. Mesmo com a condenação dos réus, não vamos ter nossos filhos de volta, mas vamos atingir o objetivo que almejamos hoje: que tragédias como essa não mais se repitam”.
Acompanhando as famílias desde o dia do desastre, a enfermeira Patrícia Curti Bueno coordena os turnos das equipes de trabalho. Ela é um dos rostos conhecidos dos familiares entre as/os profissionais da Saúde que vieram de Santa Maria para acompanhar o julgamento em Porto Alegre, o que facilita todo o processo de acolhimento. Patrícia esteve à frente do serviço de acolhimento 24h criado, em Santa Maria logo após o incêndio sendo inicialmente desenvolvido por voluntários e, posteriormente, por servidoras/es contratadas/os. Considerando isso, não se surpreendeu com toda a mobilização de profissionais para o julgamento. “Quem acompanhou em 2013 sabe o quanto as pessoas conseguem se voluntariar para estar junto. Sabíamos que isso iria mexer e motivar as/os profissionais”. Patrícia acredita que o julgamento será um desfecho importante, por encerrar de um ciclo da luta. “No luto, passamos por vários processos e um deles é o da luta. Lutamos tanto tempo para chegar nesse julgamento e podemos agora fechar esse ciclo, ressignificar o luto, para memória para a saudade”. A enfermeira também reforça a importância de se seguir lembrando e mantendo viva essa história, para que não aconteça novamente. “Precisamos sempre falar disso, para que não caia no esquecimento”.
Esse resgate dos fatos para a sociedade foi o objetivo principal da campanha “Kiss: é hora da justiça”, que teve como uma das organizadoras a advogada Tâmara Biolo Soares, voluntária da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTM). “Sabíamos da importância da retomada desse assunto, para que pessoas se lembrassem do que aconteceu e para que toda a sociedade, não só as famílias, exigissem justiça”. Para Tâmara, o julgamento representa uma vitória. “Muitas pessoas questionam se não deveria ter mais pessoas no banco dos réus. Sim, deveria, mas o fato é que os principais responsáveis estão finalmente sendo julgados. Isso é muito representativo para a construção de uma memória coletiva. Os responsáveis estão cada vez mais próximos de serem responsabilizados por aquilo que cometeram”.
Saiba mais sobre o trabalho de atenção psicossocial: CRPRS presente no trabalho de acolhimento psicossocial a familiares das vítimas e sobreviventes do incêndio na boate Kiss
Crédito da foto: psicóloga Danieli Brum de Souza, que integra equipe de acompanhamento psicossocial, durante manifestação de familiares realizada na quarta-feira, 08/12, em frente ao Fórum Central de Porto Alegre.